Título: De repente, a luz apagou. Alguém gritou fogo
Autor: Torres, Ségio
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/02/2012, Vida, p. A14

Cientista espanhola estava com o sargento Roberto Santos numa sala da base quando soou o alarme. Ele saiu e ninguém mais o viu

"Não tenho como definir com palavras o que aconteceu. Nem escrevendo consigo. A gente vê que só tem a vida e Deus." O biofísico João Paulo Machado Torres, de 46 anos, veterano de duas excursões à base do Brasil na Antártida, resumiu desta maneira o sentimento do grupo de cientistas e militares que foi resgatado após o incêndio na Estação Comandante Ferraz.

O grupo de pesquisadores está muito abalado. Há crises de choro e quadros de depressão. O suboficial Carlos Alberto Vieira Figueiredo e o sargento Roberto Lopes dos Santos, mortos durante o incêndio, eram muito queridos na base. Eles haviam sido os instrutores no treinamento físico e de comportamento diante de situações de emergência dado ao grupo antes da viagem.

"Os dois militares eram pessoas admiráveis. Integravam a frente de combate ao fogo, não fugiram ao cumprimento da missão, mesmo sabendo que a chance de não sobreviver era muito grande", contou Torres, professor do Instituto de Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador do projeto Pinguins e Skuas (gaivotas de rapina típicas da Antártida).

No momento da explosão que deu início ao fogo, ele estava acordado em um local próximo à praça das máquinas, onde o incêndio se propagou. Eram 2h. No grupo havia 60 pessoas, dos quais 30 cientistas (entre eles a especialista em aves Begoña Gimenez, espanhola que tem pesquisas em parceria com cientistas da UFRJ), 12 funcionários civis do Arsenal de Marinha, 1 representante do Ministério do Meio Ambiente, 1 alpinista e 16 militares da Marinha.

"Alguns dormiam, outros estavam acordados. Pouca gente conseguiu salvar alguma coisa dos alojamentos. Só salvei o computador porque consegui chegar à biblioteca, mas não fui até o camarote, que ficava muito lá no fundo, era muito arriscado", contou o biofísico.

Agasalhos. Do lado de fora, onde as pessoas acompanhavam o incêndio, a temperatura estava em torno de - 5ºC. Havia quem escapara com roupa de dormir. A sorte é que alguns pesquisadores mantinham fora da estação estoques de roupa de frio, que foram distribuídas.

"Como saio muito de barco, sempre levo roupas de frio extras, como garantia. Como volto molhado, troco de roupa e deixo as que tirei do lado de fora para secar. Isso ajudou muito, porque esses agasalhos puderam ser compartilhados", disse Torres.

O grupo se refugiou em dois módulos da estação isolados da estrutura destruída pelo fogo, de onde acompanhou por rádio a atuação dos militares empenhados em combater as labaredas.

"A gente perdeu muito mais do que material. Perdemos vidas", diz. "Minha pesquisa foi toda perdida, e era uma das mais baratas. Havia algumas, também perdidas, de milhões de reais. Acho que não tem de buscar culpados. O trabalho da Marinha é valoroso, graças a ela a base existe. O compromisso de reconstrução pela presidente Dilma foi a única boa notícia que tivemos até agora."

O grupo passou a noite de sábado para domingo hospedado em Punta Arenas, no Chile. Na tarde de ontem, embarcaram em um avião Hércules da Força Aérea Brasileira (FAB) - a previsão era de fizessem uma parada no Rio Grande do Sul e depois seguiriam até o Rio de Janeiro, onde deveriam pousar tarde da noite.

Relato. Do grupo original somente permaneceu em Punta Arenas a cientista espanhola Begônia Jiménez - como seu passaporte foi queimado no incêndio, ela espera o consulado espanhol providenciar seu retorno a Madri.

Begônia afirma que não poderá esquecer jamais o acidente de sábado, já que estava conversando com Roberto dos Santos no início da madrugada, quando uma pessoa entrou na sala e informou que havia fogo na base. Santos partiu imediatamente para ver o que estava acontecendo. Essa foi a última vez que Begônia o viu com vida.

"De repente, a luz se apagou. Alguém disse que havia um incêndio", conta. ""Saiam rápido daqui", outra pessoa gritou. Quando isso aconteceu, Santos foi ver o que estava ocorrendo e nunca mais voltou."/ COLABORARAM ELIA SIMEONE E MARIO ANDRADE, ESPECIAL PARA O ESTADO