Título: A terceira eleição de Putin
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Fonte: O Estado de São Paulo, 06/03/2012, Notas e informações, p. A3

O Kremlin recorreu de novo à fraude eleitoral em larga escala na eleição presidencial de domingo não propriamente para eleger Vladimir Putin pela terceira vez não consecutiva, mas para assegurar a sua vitória já no primeiro turno, como em 2000 e 2004. Mesmo depois das inéditas manifestações de massa que abalaram Moscou em protesto contra a descarada roubalheira que deu ao partido do governo, o Rússia Unida, 49% dos votos no pleito parlamentar de dezembro - ante previsões de 30% -, não havia nem sombra de dúvida sobre a confirmação de Putin como o "czar de todas as Rússias", versão século 21. Nem poderia haver.

Talvez poucas declarações de eleitores expliquem tão bem a popularidade de Putin nas vastas profundezas de seu país como os comentários colhidos pelo enviado do jornal parisiense Le Figaro no lugarejo de Semiluki, 460 quilômetros ao sul de Moscou. Depois de ouvir evocações nostálgicas da extinta União Soviética, perguntou aos entrevistados se votariam no candidato comunista Gennady Zyuganov. "Ah, não", responderam. "Ele não vai trazer o passado de volta." Quem, então, seria o seu preferido? "Putin", disseram, sem hesitar. Bem que ele ensinou ao seu povo: "Quem não tem saudade da URSS não tem coração. Quem a deseja de volta não tem juízo".

A Rússia, na realidade, não é um país de comunistas que votam em Putin. (Zyuganov ficou em segundo lugar, com 17% dos sufrágios, ante 64% do atual premiê.) É um país que, rigorosamente fiel à sua história, ainda quer um líder que tenha força para garantir a estabilidade interna e o devido respeito do mundo pela gloriosa Mãe-Rússia. Putin, o ex-agente da KGB que o desrespeitado Boris Yeltsin, o primeiro presidente pós-comunista do país, levou para a política no final dos anos 1990, é a encarnação desse ideal de autocrata nacionalista que remonta pelo menos a Pedro, o Grande (1682-1725). Putin, de todo modo, não confia só no temor reverencial que inspira à maioria dos compatriotas.

Especialmente depois da emergência das novas classes urbanas ocidentalizadas - 70% dos moscovitas usam a internet e os turistas russos disputam com os chineses a atenção das vendedoras do Harrod"s em Londres -, ele entendeu que eleições se ganham muito antes do dia do voto. Monopolizando a cobertura política na imensa maioria das emissoras de TV, prometendo alentados aumentos ao funcionalismo e escolhendo a dedo os adversários. No caso, além de Zyuganov, candidato pela quarta vez, o ultranacionalista Vladimir Zhirinovsky, na quinta disputa; o surrealista Sergei Mironov, que, embora concorrendo em 2004, dizia que Putin merecia ser reeleito; e o novato sem partido Mikhail Prokhorov, conhecido apenas como o bilionário que comprou um time de basquete em Nova Jersey.

O único nome que poderia levar a disputa para o segundo turno foi excluído por alegadas trapaças na coleta dos 2 milhões de assinaturas necessárias para o registro das candidaturas. Trata-se do veterano Grigory Yavlinsky, do partido liberal Yabloko, que adquiriu certo peso político ainda nos anos Yeltsin. Sem ele, Putin não alcançou a maioria absoluta em Moscou. Com ele, os votos acabariam mais divididos. A ideia de uma segunda rodada eleitoral era anátema para Putin não só porque tisnaria a sua liderança incontrastável, mas porque daria novo ânimo aos protestos da oposição, como o que foi marcado para ontem à noite no centro da capital.

Impondo-se de uma tacada só, Putin investiu pesadamente contra os ativistas, acusando-os de serem paus-mandados de "forças estrangeiras" interessadas em "destruir a soberania russa". Como um general que conquista a capital inimiga, o rosto banhado de lágrimas, bradou no comício da vitória: "Vencemos! Glória à Rússia!". Putin elegeu-se para um ampliado período de seis anos. Se completar o mandato, empatará com os 18 anos de poder de Leonid Brejnev na então URSS (1964-1982). Reelegendo-se até 2024, só perderá em longevidade política para um governante na história russa moderna: o ditador Josef Stalin, que assumiu em 1922 e ficou no Kremlin até morrer, 31 anos depois.