Título: A globalização das águas
Autor: Haddad, Paulo R.
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/03/2012, Economia, p. B2

PAULO R. HADDAD, professor do IBMEC/MG, foi ministro do Planejamento e da Fazenda do Governo Itamar Franco - O Estado de S.Paulo

Numa média mundial, um hambúrguer de 150 mg contém 2.400 litros de água virtual. Um par de sapatos de couro bovino contém 8 mil litros de água virtual. Uma xícara de café de 125 ml contém 140 litros de água virtual. Mas, afinal, o que é água virtual?

Esse é um conceito que mede a intensidade de água por unidade de produto. Usualmente, quando se consome um produto, a quantidade de água utilizada diretamente na sua produção pode ser muito pouco significativa. Por exemplo, para produzir um sanduíche de hambúrguer de carne bovina, a intensidade do uso direto de água é praticamente irrelevante. Mas ela se agiganta quando consideramos a intensidade indireta de água que está presente proporcionalmente num hambúrguer, somando a água consumida na dessedentação do gado durante anos, a água usada no plantio e no cultivo dos grãos que alimentarão o gado, a água necessária nos frigoríficos para beneficiar a carne, a água utilizada para gerar a energia elétrica, etc.

A lógica desse raciocínio pode remontar a 1953, quando o professor Leontief, ganhador do Prêmio Nobel de Economia, procurou explicar o nível e a composição do comércio entre um país e o resto do mundo a partir de informações quantitativas sobre a abundância ou a escassez relativa da dotação de fatores primários de cada país, os formatos da produção (tecnologia) e as preferências dos consumidores de cada país por bens e serviços finais. Com metodologia específica de cálculo matricial, Leontief estimou a intensidade de trabalho e de capital incorporada direta e indiretamente em cada mercadoria exportada.

O processo de globalização da água não se limita, pois, às questões do uso das águas transfronteiriças, como no caso dos conflitos entre o Brasil e a Bolívia sobre os usos alternativos dos recursos hídricos da Bacia Madeira-Mamoré. Esse processo se estende ao comércio internacional de alimentos, papel e celulose, minérios e metais, etc., que implica os fluxos internacionais de água virtual.

Água virtual é, pois, a água que é virtualmente incorporada nas mercadorias comercializadas. Exemplo: embora, na produção da mercadoria A (um automóvel) se utilize diretamente pouca água, a intensidade virtual de água na mercadoria A pode ser quantificada também pelo uso da água na produção do insumo B (chapa de aço) que A necessita, pelo uso da água na produção do insumo C (minério de ferro) que B necessita, etc. Portanto, a água virtual incorporada na produção da mercadoria A é em função do uso da água diretamente por A e, indiretamente, por todas as mercadorias envolvidas direta e indiretamente com a produção de A.

As relações entre os setores produtivos dependem de coeficientes técnicos de produção que incluem os coeficientes de uso de água por unidade de produção de cada setor num processo denominado interdependência estrutural da economia.

Trata-se de compreender a lógica circular da economia e seus desdobramentos. Neste caso, a economia deixa de ser considerada um macroagregado de bens e serviços finais produzidos durante um período (PIB) para ser considerada um conjunto orgânico de setores e regiões num sistema de vasos comunicantes. Assim, um forte aumento nas exportações para a China das empresas vinculadas em Goiás pode criar pressão antrópica do agronegócio sobre as águas dos afluentes da Bacia do Araguaia-Tocantins, bem como sobre as águas de outras bacias que abastecem aquelas empresas de insumos e bens de capital, direta e indiretamente.

O conceito de água virtual serve para vários propósitos: desde o cálculo da pegada ecológica de água como um indicador-síntese da sustentabilidade ambiental até como subsídio indispensável para a formulação das políticas públicas ambientais. Ademais, o conceito permite iluminar a controvérsia sobre vantagens comparativas versus as vantagens competitivas do Brasil no comércio internacional, uma vez que somos um dos países exportadores líquidos de águas (azul, verde e cinza) das Américas, ao lado de EUA, Canadá e Argentina.