Título: Cineasta foi autoral e apaixonado
Autor: Oricchio, Luiz Zanin
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/06/2012, Vida, p. A25

Um dos mais importantes diretores do País, foi crítico, curador e professor universitário

Morreu ontem, de parada cardíaca, exatamente no dia em que completava 67 anos, o cineasta Carlos Reichenbach, diretor de filmes como Alma Corsária e Filme Demência. O enterro será às 17 horas, no Cemitério do Redentor.

Carlão, como era chamado, era um dos mais importantes diretores do cinema brasileiro, um cinéfilo de origem, praticante e devoto do cinema de autor, mas, ao mesmo tempo, cineasta antenado na veia popular dessa arte.

Gaúcho de Porto Alegre, onde nasceu em 1945, Reichenbach criou-se em São Paulo. Apaixonado por cinema, era rato de cinemateca e via de clássicos europeus ao cinema B americano. Devorava a revista francesa Cahiers du Cinéma e escreveu críticas no diário nipo-brasileiro São Paulo Shimbum, pois era aficionado por diretores japoneses como Eizo Sugawa e Shohei Imamura. Em sua obra, Carlão dialogava com todos esses diretores, dos japoneses aos americanos como Nicholas Ray e Samuel Fuller, aos franceses da nouvelle vague como Jean-Luc Godard.

Mas, cineasta do Terceiro Mundo que era, Carlão iniciou carreira na Boca do Lixo do cinema paulistano, famosa por suas pornochanchadas. Mas mesmo filmando na Boca, Carlão conseguia fazer cinema autoral e discutir suas ideias libertárias. Pois era isso que ele era - um libertário, alguém de alma generosa e anarquista, que acreditava na emancipação do ser humano diante daquilo que o oprime na sociedade, dos preconceitos de sexo e cor à ignorância e a miséria econômica.

Desse modo, rodou na Boca filmes que estão entre os seus melhores, como Liliam M: Relatório Confidencial (1974) e A Ilha dos Prazeres Proibidos (1977). Já com financiamento da Embrafilme, realiza aquele que, para este crítico, é sua obra-prima, Filme Demência (1985). Uma espécie de Fausto à brasileira, em diálogo sutil com a obra de Goethe, no qual um pequeno empresário reage à falência de sua fábrica saindo pela noite paulistana em busca do paraíso perdido.

Carlão sabia ser terno em suas histórias, como em Anjos do Arrabalde (1986) no qual segue a trajetória de professoras da periferia vividas por Betty Faria, Irene Stefânia e Clarisse Abujamra. É um filme de corte realista, que trata da violência urbana no cotidiano da classe média baixa. Para muitos, seu melhor filme. Com ele, ganhou o prêmio principal no Festival de Gramado.

Também venceu em Brasília, o mais antigo e tradicional festival de cinema brasileiro, com o poético e dilacerado Alma Corsária (1993), uma ode à política, à liberdade e também ao amor e à amizade. O protagonista é o ator baiano Bertrand Duarte.

Com Dois Córregos (1999), Carlão evoca o período da ditadura militar por meio do personagem de Carlos Alberto Riccelli, um ex-militante político que se refugia numa cidade do interior e provoca frisson nas moças da casa onde se esconde.

Essa atenção com a política, mas também com o universo feminino, reflete-se em seu amplo projeto sobre a vida das operárias brasileiras, chamado, em seu conjunto de ABC Clube Democrático. Pensando originalmente como uma série de quatro longas-metragens, Carlão conseguiu realizar dois deles - Garotas do ABC (2004) e Falsa Loura (2007). Em ambos, os problemas das meninas que batalham nas fábricas e se divertem nos clubes da periferia. Uma visão amorosa, que fala dos problemas de uma classe social sem muita visibilidade nas telas, mas também de suas alegrias e sonhos. Reichenbach preparava novo filme, Um Anjo Desarticulado, que não teve tempo de realizar. Ao todo, realizou 22 filmes, entre longas e curtas.