Título: A reforma do Código Penal
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/06/2012, Notas e informações, p. A3

Instalada em outubro de 2011, a comissão especial do Senado encarregada de preparar a reforma do Código Penal concluiu seu trabalho e entregou um relatório de 500 páginas, na segunda-feira. Presidida pelo ministro Gilson Dipp, do Superior Tribunal de Justiça, e integrada por 16 juízes, promotores e advogados, a comissão surpreendeu pela rapidez com que trabalhou e pelo caráter polêmico de várias propostas de mudança da legislação penal. Editado em 1940 pela ditadura varguista, o Código em vigor sofreu, ao longo das últimas sete décadas, dezenas de emendas que o desfiguram, conceitual e doutrinariamente.

Quando a comissão especial do Senado foi instalada, no ano passado, seus integrantes se comprometeram a preparar um anteprojeto moderno e capaz de dar uma identidade doutrinária ao nosso ordenamento jurídico. Mas, pelo que foi divulgado até agora, a proposta contém incoerências e fica a desejar em muitos pontos, uma vez que os integrantes da comissão se deixaram levar por teses politicamente corretas e por inovações que não têm consenso entre os especialistas em direito penal - como é o caso do aumento dos casos em que o aborto pode ser realizado sem configurar crime.

Por exemplo, o anteprojeto prevê a descriminalização do plantio, da compra e do porte de qualquer tipo de droga para consumo próprio, com a condição de a quantia ser equivalente a cinco dias de uso. Mas, ao mesmo tempo, torna crime sujeito à prisão a condução de veículos sob a influência de álcool, mesmo que o condutor não cause qualquer acidente.

A comissão agiu corretamente, quando propôs a revogação quase completa da Lei de Contravenções Penais, de 1941. Mas ela também cria desordenadamente novos tipos penais com excessivo rigor punitivo. Colidindo com o espírito da Lei de Execução Penal, que entrou em vigor em 1984 e estimula a aplicação de medidas socioeducativas a presos com bom comportamento e baixo potencial ofensivo, o anteprojeto criminaliza a prática de bullying, o abandono de animais e a discriminação racial. São comportamentos que poderiam ser coibidos por meio de campanhas de orientação da família e da escola e pela aplicação de multas.

Ao enveredar pelos modismos doutrinários e pelo populismo jurídico, o anteprojeto caminha em linha antagônica ao que tem sido adotado no resto do mundo, em matéria de direito penal. Em vez de estimular a aplicação de penas alternativas e reservar as penas de prisão somente para os crimes mais violentos, ele amplia o número de crimes passíveis de penas privativas de liberdade. Isso é evidenciado pelo dispositivo que inclui o racismo - um problema de caráter basicamente cultural - no elenco de crimes hediondos. Isso também é evidenciado pelas propostas de responsabilizar penalmente as pessoas jurídicas - uma inovação desnecessária, pois as empresas já podem ser acionadas, responsabilizadas e punidas com base nas legislações cível, trabalhista e fiscal - e de aplicar o conceito de corrupção nas relações entre particulares. Com isso, funcionários de empresas privadas que propuserem, receberem ou aceitarem vantagens indevidas ficam sujeitos à pena de prisão.

Por fim, o anteprojeto do Código Penal colide frontalmente com o projeto do novo Código de Processo Penal, que foi concebido sob influência do chamado "garantismo processual". Aprovado pelo Senado há cerca de dois anos, esse projeto - que se encontra na Câmara dos Deputados - amplia os direitos dos réus, propicia maior equilíbrio entre acusado e acusador e reforça as garantias individuais, enquanto o anteprojeto do Senado é mais intervencionista, criminalizando novas condutas e aumentando o alcance das penas privativas de liberdade. Por aumentar o rigor das sanções penais, o anteprojeto do Senado também colide com a proposta de reforma da parte especial do Código Penal que vem sendo preparada pela Câmara, sob coordenação do deputado Alessandro Molon (PT-RJ), valorizando a aplicação de penas alternativas.

Como as três propostas terão de ser conciliadas, ainda é cedo para saber o que prevalecerá e o que cairá do anteprojeto do Código Penal da comissão especial do Senado.