Título: Carta paraguaia é incapaz de conter crise
Autor: Simon, Roberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/07/2012, Internacional, p. A15

No aniversário de 20 anos da Constituição do Paraguai, impeachment de Lugo mostra fragilidade do sistema político do país após ditadura Stroessner

Estranhas ironias são uma constante na história política paraguaia e a queda de Fernando Lugo não foi exceção: na mesma semana do impeachment relâmpago do presidente, o Paraguai comemorava o 20.º aniversário de sua primeira Constituição democrática. Foram duas décadas de frágil democracia combinada a um sistema oligárquico enraizado, uma mistura explosiva que vem ditando a vida política no país vizinho.

O principal problema não é a Carta Constitucional de 1992, que buscava enterrar a herança da ditadura de Alfredo Stroessner, de 1954 a 1989. "Nossa Constituição assegura direitos fundamentais e é progressista em questões como gênero e respeito à cultura guarani", explica Susana Amabile, socióloga da ONG de educação cívica Decidamos.

A "grande questão", afirma Susana, é a "cultura política paraguaia", que deu origem a um Estado totalmente loteado por grupos oligárquicos.

O sistema partidário no Paraguai é dominado pelos Colorados e Liberais, seguidos por grupos menores como o Pátria Querida, o Unace e a Frente Guasú, do ex-presidente Lugo. Em 2008, liberais decidiram apoiar o ex-bispo para romper a hegemonia quase sete décadas dos colorados no poder. A união de forças deu certo, mas criou uma aliança instável.

Conforme a configuração de forças entre partidos no Congresso, as instituições do Estado são loteadas. "Os líderes partidários negociam os juízes da Suprema Corte, os promotores do Ministério Público, a Controladoria-Geral da União", enumera Susana. O Congresso, assim, torna-se o centro do Estado, de onde irradiam os poderes - ou a "grande bolsa de valores", segundo a socióloga.

A disputa por poder dentro dos partidos é outro ponto obscuro da política paraguaia. As eleições para o Legislativo são de lista fechada, portanto o cidadão vota em um partido e os parlamentares são eleitos de acordo com a ordem em que estão posicionados nesses rankings. Mas, para compor as listas, as legendas adotam uma mistura de prévias e indicações de caciques. Até pouco tempo, a lista inteira era fechada e o eleitor não sabia em quem estava votando.

Muitas vezes grupos derrotados nas prévias acabam debandando do partido e se aliando ao rival. Foi esse o caso da eleição de 2008, quando os colorados acabaram divididos por causa da vitória interna de Blanca Duarte. Alguns se bandearam para o lado dos liberais, facilitando a vitória de Lugo.

A cisão interna pode ser ainda mais esquizofrênica. Durante a ditadura de Alfredo Stroessner, parte dos liberais começou a apoiar o governo, enquanto outro setor do mesmo partido era duramente perseguido e torturado nos porões do regime. A diferença fez nascer em 1967 o Partido Liberal Radical (PLR), que - por causa de outra briga interna - se tornou em 1972 o Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA).

Julgamento político. A Constituição democrática, porém, tem alguns pontos nebulosos. Um deles é a figura do julgamento político, mecanismo que possibilita ao Congresso, por maioria qualificada (dois terços) nas duas casas, derrubar o presidente, como ocorreu no dia 22.

O problema não é o que a Constituição diz, mas o que ela omite: o artigo 225 fala apenas que o presidente pode ser deposto, mas coloca nas mãos dos parlamentares a definição de todas as regras pelas quais o julgamento será feito. No caso de Lugo, os congressistas decidiram que o processo deveria durar menos de dois dias e os advogados do réu teriam duas horas para se explicar.

Lugo não foi o primeiro a tropeçar no julgamento político. Em 1999, o presidente Raúl Cubas Grau renunciou antes de ser deposto, acusado pelo assassinato de seu vice, Luis Argaña. O caso deu início a violentos distúrbios, o "Março Paraguaio".

"A diferença é que, com Cubas, a violência entrou em cena logo no início, com a morte de Argaña. No caso de Lugo, não. E ninguém se dispôs a ir às ruas por ele", diz Milda Rivarola, da Academia Paraguaia de História.

Há alguns meses a tensão no Paraguai vinha crescendo. Deputados e senadores aprovaram no dia 2 uma lei que ampliava em US$ 50 milhões o custo da Justiça Eleitoral, em benefício de operadores dos grandes partidos políticos. O projeto criou um movimento nas redes sociais e Lugo, ao final, vetou o texto.

Duas semanas depois, confrontos entre camponeses e policiais em Curuguaty deixaram 17 mortos. Liberais, então, abandonaram a coalizão governista e o presidente ficou à deriva.

"Nossa democracia é estável como uma pedra", garantiu ao Estado Lino Oviedo, presidente do Partido Unace acusado de ter participado de quase todas as tramas palacianas do Paraguai nas últimas décadas, incluindo a tentativa de golpe de 1996, que lhe rendeu um período de exílio no Brasil. "Essa é a nossa democracia, construída por todos paraguaios."