Título: O maior recuo do Mercosul
Autor: Astori, Danilon
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/07/2012, Internacional, p. A14

Sempre manifestei minhas opiniões - em todos os sentidos e, em particular, sempre que havia divergências - primeiramente nos âmbitos internos do próprio governo uruguaio ou em conversações diretas. Não se trata de uma questão de estilo, mas de uma concepção de coerência, das formas institucionais e de lealdade política com os meus companheiros.

Há ocasiões em que a relevância dos temas e sua relação direta com o rumo estratégico ou com os valores em jogo, impedem-me de silenciar. Se o fizesse, estaria traindo minhas convicções e parte essencial da minha condição de homem de esquerda.

Tampouco irei argumentar sobre a importância de um debate profundo e sério nos âmbitos correspondentes - incluído o âmbito público - sobre grandes temas políticos, ideológicos, que têm a ver com o destino, a identidade e os grandes objetivos da esquerda em um mundo em que o capitalismo maduro vive uma crise muito profunda e estrutural. Não só fiz essas propostas em várias oportunidades, como, na medida da minha capacidade, sempre procuro contribuir com ideias, opiniões e ações no plano do governo e da Frente Ampla.

Podem-se contar nos dedos de uma mão apenas as oportunidades nas quais divergi publicamente de posições do atual governo e todos sabem que, em definitivo, ao chegar o momento, apoiei e respaldei onde necessário as decisões adotadas.

Considero o ingresso da Venezuela no Mercosul - decidido na cúpula de Mendoza pelos presidentes de Argentina, Brasil e Uruguai, no desconhecimento do caráter institucional vigente - um ato negativo para o bloco regional, para o Uruguai e até mesmo para a Venezuela.

Há alguns dias, afirmei que "não compartilho da decisão de determinar o ingresso da Venezuela como membro pleno do bloco, por tratar-se de uma agressão institucional considerável para o Mercosul. É uma ferida institucional muito grave, talvez a mais grave nos 21 anos de existência do Mercosul" e reafirmo esse conceito.

Reviravolta. A posição de não acompanhar o ingresso da Venezuela nessas circunstâncias era compartilhada por toda a delegação uruguaia ao sair do país rumo a Mendoza, até mesmo pelo presidente José Mujica e pelo ministro das Relações Exteriores, Luis Almagro. Foi a posição defendida pelo chanceler até o último momento e também pela chancelaria brasileira. O que mudou durante a cúpula para reverter a posição da delegação uruguaia? Não sabemos.

Acaso a posição prévia da delegação uruguaia estava equivocada? Não contemplava as mudanças que ocorreram no Mercosul ou na estratégia regional para os próximos anos? Quem nos abriu os olhos? Que circunstâncias que não conhecemos fizeram com que o político predominasse sobre o legal? Por essas indagações é possível perceber que houve um desconhecimento das normas legais e institucionais.

O maior retrocesso, o mais grave, sofrido pelo Mercosul em toda a sua complexa história, é que agora o único caráter institucional válido não é o dos tratados, não é a dos mecanismos que protegem a todos nós, que exigiriam amplas e trabalhosas negociações. Agora, dependemos das decisões dos presidentes dos países. Essa resolução poderá ter consequências profundas no futuro, como a de adquirir um caráter institucional tão débil que se tornará inútil.

Estou profundamente convencido de que o Mercosul é uma necessidade, não apenas comercial, como também política e estratégica para os nossos países. E como apoio - e apoiei com convicção - o ingresso da Venezuela no Mercosul, julgo que foi cometido um grave erro. A não ser que se considere que, com tão grande desgaste do Mercosul original, seja preciso substituí-lo por outro bloco de integração que suponha a incorporação de novas nações. É um enfoque possível, embora, para considerá-lo, fosse importante formulá-lo de maneira explícita.

Prefiro outro caminho, que é o fortalecimento do Mercosul original e - me apresso a acrescentar - não para criticá-lo, mas para que jogue o seu enorme potencial a favor do desenvolvimento econômico e social dos nossos países. Evidentemente, um Mercosul forte estará em condições de firmar acordos com outros blocos e países da América Latina e do mundo em seu conjunto. Mas não é possível ignorar todo o esforço feito e a experiência acumulada desde 1991.

Com acertos e erros, e com todas as dificuldades encontradas nos últimos anos - especialmente com a Argentina - o caminho percorrido tem de constituir uma formidável ajuda para consolidar a integração regional e torná-la sustentável. Para tanto, sempre será necessário levar em conta que o Mercosul não é uma união de governos, mas de países, de Estados e - quem dera - fosse capaz de mobilizar mais seus povos. Também será necessário considerar que o enfraquecimento do caráter institucional do bloco favorece apenas a seus adversários, aqueles que por razões políticas ou ideológicas são contrários ao projeto e a um processo mais amplo de integração latino-americana.

É por isso que julgo muito acertada a medida adotada pela chancelaria de analisar com sentido político, mas com profissionalismo, os aspectos legais e as consequências jurídicas que porventura venha a ter a decisão de incorporar a Venezuela dessa maneira ao Mercosul.

Se há um país que deveria preservar e lutar para fortalecer o caráter institucional do Mercosul, é o Uruguai; não somente por suas dimensões, mas também por sua tradição e sua história. A história recente demonstrou e confirmou mil vezes que é o que nos convém e precisamos dela. Os exemplos comerciais, políticos, e até mesmo os dolorosos bloqueios recentes são terríveis.

Não é um capricho formal, não existe nenhuma contradição entre a legalidade e a política. Ao contrário. É bom lembrar - porque tem a ver com as profundas definições democráticas da esquerda - que não se pode, não se deve permitir que a lei seja escrava da política. Por isso, nos opusemos e nos opomos ao que ocorreu com o Paraguai. Por isso é preciso ser coerentes.

Há outra razão pela qual eu me manifesto contra, e é em relação à Venezuela. Estamos profundamente convencidos da necessidade e do valor da incorporação da Venezuela ao Mercosul. Não porque o país é um produtor de petróleo e um comprador de alimentos, isto é, não apenas por razões comerciais, mas porque ele fortalece o bloco e favorece a consolidação dessa nação em seu processo integrador. Por essas razões não é justo que seu ingresso se dê dessa maneira, na contramão das instituições do Mercosul. Os venezuelanos não merecem isso.

A nova situação que se criou me enche de inquietação. O Paraguai foi suspenso e, quando retornar, depois de suas eleições, com um presidente e um novo Senado eleito em 2013, devemos esperar que volte a funcionar o mecanismo dos acordos a serem ratificados pelos Parlamentos para o ingresso de novos países? Se houver novos países que queiram integrar-se ao bloco, qual será agora o mecanismo para a aprovação do seu ingresso? O que predominará: a política ou a legalidade?

Se todos aceitarmos e os uruguaios concordarem que o Mercosul está em crise, o novo caminho será acaso recorrer a cada contencioso, a cada problema que surgir, à opinião dos presidentes? Está muito claro para mim que desde o nascimento do bloco as coisas mudaram no mundo e na nossa região e aceito a opinião dos meus companheiros e suas contribuições, mas o enfraquecimento do caráter institucional do Mercosul - para o qual as próprias chancelarias do Brasil e do Uruguai advertiram - melhorará nossa posição no mundo, perante os outros países, em outros âmbitos de negociação?

O novo impulso que precisamos dar à integração acaso irá nessa direção? Como será possível apreciar, estamos diante de temas de enorme importância política.

Tais temas têm a ver com o rumo do país, com sua inserção internacional, com a relação de respeito e de equilíbrio com nossos vizinhos e parceiros, e, por tudo isso, têm a ver com a vida da nossa gente, com o nosso desenvolvimento, nossa produção, nossa economia, ou seja, com nossa sociedade. Por essa razão sinto a responsabilidade de transmitir minha opinião a esse respeito. Minha única intenção é contribuir para uma reflexão da qual - por sua relevância - não podemos nos esquivar.