Título: No horizonte de Alhaji, só o fim da era Assad
Autor: Netto, Andrei
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/08/2012, Internacional, p. A19

Na mira de Damasco

E m uma revolução armada, nem todos rebeldes pegam em armas, mas são cruciais. Na Síria, como antes na Líbia, um batalhão de insurgentes vive a guerra civil em seus bastidores, articulando movimentos civis, traficando armas, combustíveis e alimentos ou garantindo um mínimo de acesso à informação por parte da opinião pública internacional.

Essas funções são desempenhadas por homens que não pegam em armas, mas são essenciais para o sucesso da revolta. Yasser. Alhaji, empresário de 51 anos, é um desses ativistas. Um homem que, como tantos, arrisca a vida em nome da revolução que ele se arrepende de não ter feito 27 anos atrás. Alhaji vivenciou com apatia a contestação ao regime de Hafez Assad nos anos 80. À época, era funcionário público, professor de educação física, e foi enganado pelo discurso oficial, como ele próprio admite. "A propaganda do regime falava em democracia, em eleição e me deixei levar. É algo que sempre lamentei", disse.

Durante duas décadas, Alhaji esperou pela oportunidade de se redimir consigo mesmo e superar o sentimento de culpa por não ter saído às ruas e protestado quando mais de 30 mil pessoas foram massacradas em Hama. A chance de dar uma resposta ao regime surgiu com os primeiros levantes na Tunísia, em dezembro de 2010, depois no Egito, na Líbia e no Iêmen, em 2011. Em março do ano passado, com a eclosão dos protestos na Síria, ele teria a certeza de que seu país também tentaria se libertar.

Quando a revolta começou, ele ainda vivia na Grécia. Por familiares e amigos, informou-se sobre as chances de um movimento insurgente em sua região, o noroeste da Síria. As notícias não eram mais animadoras na Província de Alepo do que em outras cidades, como Deraa ou Homs, onde os levantes tinham mais força. Ainda assim, decidiu voltar em abril, disposto a investir o que ganhava com seus negócios em favor da revolução. "Não foi uma decisão difícil", disse. "Fui enganado por Bashar. Acreditei que ele era um jovem com excelente estudo, que faria as reformas que a Síria precisava. Mas eu estava errado e era preciso corrigir esse erro grosseiro." Alhaji discutiu com sua mulher, que tinha medo de sua implicação no conflito, e obteve o apoio dos dois filhos mais velhos, Amir, de 16 anos, e Lamis, de 15. Retornou a Marea, cidade próxima à fronteira com a Turquia, onde mantinha parte de seus negócios. Ali, se pôs a ajudar a organizar a oposição no norte da Síria.

"As pessoas da minha região são muito simples, humildes e ingênuas", explicou. "Sempre foram impotentes diante de Bashar e de seus crimes. Queríamos que a revolução não apenas acabasse com a ditadura, mas também com a certeza de que as pessoas não têm direitos, que não vale a pena lutar por nada."

Convencido, Alhaji juntou-se aos líderes militares e civis locais, passou a organizar encontros comunitários e envolveu-se na compra ilegal de munição, combustível e telefones para os rebeldes. Aos poucos, sua participação tornou-se essencial na região de Marea. Com a relevância, vieram as primeiras suspeitas sobre seu comportamento e, com elas, ameaças de shabihas - os mercenários de Assad - e de agentes de inteligência.

Em 10 de abril, elas chegaram ao ápice. Em seu escritório, Alhaji recebeu a informação de que tanques do Exército, soldados, agentes de polícia e shabihas se aproximavam. Com a ajuda de moradores, fugiu e escondeu-se em um casebre das imediações. Vinte e cinco minutos depois, seu escritório seria cravejado por disparos de metralhadoras com a ajuda de um helicóptero. "Eles queriam ter a certeza de que eu seria morto."

Em vez de deixar o país, aprofundou seu envolvimento. Passou a aplicar os recursos de que dispunha para financiar a revolução em Alepo e a acolher a imprensa estrangeira que busca cobrir a situação caótica do país, mesmo sem a autorização do regime. "Todo o meu esforço e tudo o que ganho vai para o movimento." Entre uma atividade e outra, faz reuniões com a população para conscientizá-la da importância do movimento e, mesmo sendo sunita, explicar aos companheiros de fé que a vingança e a violência contra alauitas, drusos e cristãos, em caso de triunfo na revolta, é um caminho para a perdição. "O risco de violência confessional é alto e estamos lutando para que isso não ocorra."

Essas atribuições são menos visíveis do que pegar em armas quando se trata de um conflito sangrento, mas não é menos essencial para a sorte da revolução. "Não gosto de armas e essa é a minha contribuição. Gostaria de ter feito a revolução 27 anos atrás. Agora, não podemos perder a chance de começar uma vida nova."