Título: Por que a pobreza nos EUA não acaba
Autor: Eldeman, Peter
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/08/2012, Economia, p. B7

A primeira coisa a fazer é ter mais empregos que paguem salários decentes; não há um número suficiente desses em nossa economia atual

Ronald Reagan famosamente disse: "Nós travamos uma guerra contra a pobreza, e a pobreza venceu". Com 46 milhões de americanos - 15% da população - agora computados como pobres, é tentador pensar que ele poderia estar certo.

Olhando-se mais no fundo, a tentação aumenta. A porcentagem mais baixa de pobreza desde que começamos a calcular foi 11,1% em 1973. A taxa chegou a 15,2% em 1983. Em 2000, após um surto de prosperidade, ela recuou para 11,3%, e hoje, no entanto, mais 15 milhões de pessoas são pobres.

Ao mesmo tempo, fizemos muitas coisas que funcionam. Da Seguridade Social a cupons de comida, a crédito fiscal sobre a renda e assim por diante, sancionamos programas que hoje mantêm 40 milhões de pessoas fora da pobreza. A pobreza seria quase o dobro do que é hoje sem essas medidas, segundo o Centro para Prioridades de Política e Orçamento.

Falar em "pobreza venceu" é como dizer que as Leis do Ar Limpo e da Água Limpa fracassaram porque ainda existe poluição.

Com tudo isso, por que não realizamos mais? Quatro razões: um número impressionante de pessoas trabalha em empregos mal remunerados. Além disso, muito mais famílias são chefiadas agora por somente um dos pais, o que lhes dificulta ganhar uma renda mínima dos empregos que estão tipicamente disponíveis. O quase desaparecimento da ajuda em dinheiro para mães de filhos de baixa renda - isto é, bem-estar social - em boa parte do país também contribui. E problemas persistentes de raça e gênero implicam uma pobreza maior em minorias e famílias chefiadas por mães solteiras.

A primeira coisa necessária se quisermos tirar pessoas da pobreza é mais empregos que paguem salários decentes. Não há um número suficiente desses em nossa economia atual. A necessidade de bons empregos se estende muito além da crise atual. Precisaremos de uma política de pleno emprego e um investimento maior em educação e em estratégias de desenvolvimento profissional no século 21 para termos alguma esperança de romper o mal-estar econômico vigente.

Esse não é um problema específico deste momento. Nós sofremos uma inundação de empregos mal remunerados nos últimos 40 anos. A maior parte da renda de pessoas na pobreza provém do trabalho. Segundo os dados mais recentes disponíveis do Departamento do Censo, 104 milhões de pessoas - um terço da população - têm rendas abaixo do dobro da linha da pobreza, menos de US$ 38 mil para uma família de três. Elas lutam para fechar as contas a cada mês.

Metade dos empregos do país paga menos de US$ 34 mil por ano, segundo o Economic Policy Institute. Um quarto paga menos que a linha da pobreza para uma família de quatro, menos de US$ 23 mil anuais.

Famílias que podem enviar um outro adulto ao trabalho se saem melhor, mas mães (e pais) solteiras não têm essa opção. A pobreza em famílias com filhos chefiadas por mães solteiras excede 40%.

Os salários dos que trabalham em empregos na metade inferior estão estagnados desde 1973, havendo aumentado apenas 7%.

Não é que a economia como um todo estagnou. Houve crescimento, muito até, mas ele se limitou ao topo. A percepção de que 99% de nós foram deixados no pó pelos 1,0% no topo (alguns muito mais atrás do que outros) chegou muito mais tarde do que deveria - Rip Van Winkle e um pouco mais. Foi preciso a Grande Recessão para chamar a atenção das pessoas, mas os fatos já vinham se acumulando há tempos. Se despertamos, podemos agir.

Os empregos mal remunerados afligem dezenas de milhões de pessoas. Na outra ponta do espectro de baixa renda, temos um problema diferente. A rede de segurança para mães solteiras e seus filhos apresentou um grande rombo nesses anos. Essa é uma causa importante para o aumento dramático da pobreza extrema nesses anos. O Censo nos diz que 20,5 milhões de pessoas ganham rendas abaixo de metade da linha da pobreza, menos de cerca de US$ 9.500 para uma família de três - até 8 milhões desde 2000.

Por quê? Uma razão substancial é a quase extinção do sistema de bem-estar - agora chamado Assistência Temporária a Famílias Necessitadas, ou Tanf (na sigla em inglês). Em meados dos anos 90, mais de dois terços dos filhos de famílias pobres recebiam ajuda assistencial. Mas esse número encolheu na última década e meia para aproximadamente 27%.

Um resultado: seis milhões de pessoas não têm outra renda além dos cupons de alimentos. Os cupons proporcionam uma renda de um terço da renda da pobreza, perto de US$ 6.300 para uma família de três. É difícil imaginar como elas sobrevivem.

Mas ao menos temos os cupons de alimentos. Eles têm sido uma poderosa ferramenta antirrecessão nos últimos cinco anos, com o número de receptores subindo de 26,3 milhões em 2007 para 46 milhões hoje. Por contraste, o sistema de bem-estar fez pouco para contrabalançar o impacto da recessão. Embora o número de pessoas que recebem ajuda em dinheiro tenha crescido de 3,9 milhões para 4,5 milhões desde 2007, muitos Estados na verdade diminuíram o tamanho de suas folhas de pagamento e reduziram os benefícios dos mais necessitados.

Minorias. Raça e gênero jogam um enorme papel na determinação da persistência da pobreza. As minorias são desproporcionalmente pobres: cerca de 27% dos afro-americanos, latinos e índios americanos são pobres, ante 10% dos brancos. As disparidades de riqueza são ainda maiores. Ao mesmo tempo, os brancos constituem o maior número dos pobres. Esse é um fato que merece ênfase, pois as medidas para aumentar a renda e prover suporte ao trabalho ajudarão mais os brancos que as minorias. Mas não podemos ignorar raça e gênero, tanto por que eles apresentam desafios particulares, como por que boa parte da política para a pobreza é fundada nessas questões.

Nós sabemos o que é preciso fazer - fazer os ricos pagarem sua justa cota de gestão do país, aumentar o salário mínimo, fornecer assistência médica e uma rede de segurança decente, etc.

Realisticamente falando, porém, o desafio imediato é conservar o que temos. O representante Paul Ryan e seus pares ideológicos cortariam tudo, da Seguridade Social ao Medicare e a lista toda, e dariam mais isenções fiscais para as pessoas do topo. Robin Hood estaria se virando no túmulo.

Não devemos nos enganar. Não é certo que as coisas fiquem como estão.

A riqueza e a renda do 1,0% do topo crescem à custa de todos os demais.

O dinheiro gera poder, e o poder gera mais dinheiro. Esse é um círculo verdadeiramente vicioso.

Uma política de mudança infalível necessariamente envolveria fazer as pessoas do meio perceberem os próprios interesses econômicos. Se votarem em seus próprios interesses, elas elegerão pessoas que provavelmente estarão mais alinhadas com pessoas com rendas mais baixas e também com elas. Enquanto as pessoas do meio se identificarem mais com as pessoas do topo do que com as de baixo, estamos condenados. A quantidade obscena de dinheiro que corre para o processo eleitoral torna as coisas ainda mais difíceis.

Mas a história mostra que o poder popular, às vezes, vence. Foi o que ocorreu na Era Progressista, há um século, e na Grande Depressão também. A desigualdade bruta daqueles tempos produziu um amálgama de insatisfação popular, organização, jornalismo sensacionalista e liderança política que atacaram os grandes - e crescentes - problemas estruturais da desigualdade econômica. O movimento pelos direitos civis mudou o curso da história e se expandiu para o movimento das mulheres, o movimento ambientalista e, mais tarde, o movimento pelos direitos dos gays. Será que poderíamos ter dito no dia anterior à aurora de cada um deles que ele ocorreria, para não dizer que teria sucesso? Será que Rosa Parks sabia? Nós temos os ingredientes. Em primeiro lugar, a demografia do eleitorado está mudando. As consequências disso não serão automáticas, por certo, mas elas criam uma oportunidade. A nova geração de jovens - em geral desiludidos com o poder encrustado em todas as instituições e, por isso, tendentes ao libertarismo - está madura para uma nova política da honestidade. As pessoas de baixa renda participarão se houver candidatos que falem por suas situações. A mudança precisa vir de baixo para cima e da liderança sinergética que a extrai. Quando pessoas decidem que não aguentam mais e há candidatos que defendem o que elas querem, elas votarão de acordo com isso.

Já vi dias de promessa e dias de escuridão, e os vi mais de uma vez.

Toda a história é assim. As pessoas têm o poder se o usarem, mas elas precisam perceber que isso é do seu interesse. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

*PETER EDELMAN É PROFESSOR DE DIREITO NA UNIVERSIDADE DE GEORGETOWN E AUTOR, MAIS RECENTEMENTE, DE “SO RICH, SO POOR: WHY IT’S SO HARD TO END POVERTY IN AMERICA? ("TÃO RICO E TÃO POBRE: PORQUE É TÃO DIFÍCIL ACABAR COM A POBREZA NA AMÉRICA?”)