Título: Desvio de função
Autor: Kramer, Dora
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/08/2012, Nacional, p. A8

É incontestável: não tives­sem acontecido as CPIs do PC e dos Correios não teria havido a destituição de Fer­nando Collor nem hoje estaria em julgamento o processo do mensalão.

As denúncias de Pedro Collor so­bre as negociatas do tesoureiro Pau­lo César Farias no governo do irmão teriam caído no vazio, bem como va­leriam os desmentidos às revelações de Roberto Jefferson sobre um esque­ma de formação de maioria congressual em troca de vantagens financei­ras e a vida seguiria.

Sem o trabalho das comissões de inquérito, o levantamento de provas e tomada de depoimentos à vista do País, nenhum dos casos teria adquiri­do materialidade e hoje provavelmente ambos seriam enquadrados na catego­ria das meras suposições.

O escrutínio público tornou irreversí­veis as consequências.

Natural, portanto, que o Brasil cele­brasse o papel das CPIs, as reconheces­se como instrumentos essenciais no aperfeiçoamento institucional e refor­çasse suas funções.

Mas, ao que parece justamente pelas qualidades do instituto, vem ocorrendo o contrário: nos últimos anos houve es­vaziamento na função das comissões de inquérito que têm a validade do produ­to de suas investigações contestada e praticamente perderam a condição de interrogar testemunhas e investigados.

Hoje, na prática há uma inversão de ofício, com as CPIs curvando-se às conveniências dos convocados que teriam a obrigação de prestar os esclarecimen­tos devidos às comissões.

Chegou-se ao clímax dessa distor­ção agora na CPI do Cachoeira, cujo procedimento aprovado pela maioria é o de simplesmente dispensar a pes­soa que invoca o direito constitucio­nal ao silêncio.

Em 1992, quando da CPI do PC, e em 2005, por ocasião das investigações que resultaram no processo do mensalão, os depoentes depunham a despeito de a Constituição ser a mesma.

O que mudou de lá para cá?

Basicamente o aprendizado do cami­nho das pedras e o uso deformado de uma garantia individual que, entretan­to, não se sobrepõe à prerrogativa da comissão de tocar seu inquérito.

Os convocados "descobriram" a via do habeas corpus concedido pelo Supremo. A Justiça não tem opção a não ser curvar-se ao ditame legal do direi­to do cidadão de não produzir provas contra si.

Mas o Legislativo tem meios de res­peitar o silêncio sem precisar que o Judi­ciário lhe diga como cumprir a Consti­tuição. Não precisa, como é a regra na CPI do Cachoeira, liminarmente abrir mão do interrogatório.

A comissão poderia, sim, questionar testemunhas e investigados para explicitar as acusações preservando a deci­são de cada um de não se defender. Se o caso for de conhecimento notório, o silêncio pode ser tomado como falso testemunho.

Ademais, nem todas as questões im­plicam necessariamente a produção de provas contra o depoente.

Quando a CPI assim decide trabalha deliberadamente contra si, escorando-se numa decisão judicial para não as­sumir sua vontade de não ouvir. Co­mo o que alguns teriam a dizer não interessa a esse ou àquele partido, se ninguém falar atendem-se aos inte­resses da maioria.

Memória. Ontem fez sete anos que o publicitário Duda Mendonça foi à CPI dos Correios dizer que recebera dinheiro de caixa 2 pelos serviços prestados à campanha presidencial de 2002, fornecendo o que o próprio governo à época considerou como a prova material que poderia sustentar a abertura de impeachment contra o então presidente Lula.

Foi o momento crucial da histó­ria e também definidor da volta por cima.

A oposição calculou que poderia até ter razão, mas não teria a força necessária para levar adiante o pro­cesso. O governo desistiu definitiva­mente das reformas da trabalhista, sindical e da Previdência, renovan­do os termos de aliança com o fun­cionalismo público e o movimento sindical.

Um definitivo reforço no exército de defesa que a oposição pesou, me­diu e julgoú4mpossível de enfrentar.