Título: Estudos revelam riqueza genética no DNA lixo
Autor: Escobar, Herton
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/09/2012, Vida, p. A19

Mais de 30 trabalhos publicados simultaneamente sugerem que mais de 80% do genoma humano têm algum tipo de função

Onze anos atrás, quando o primeiro rascunho de sequenciamento do genoma humano foi publicado, uma das maiores surpresas foi constatar que apenas 2% das 3 bilhões de "letras" químicas que o compõem correspondem a genes propriamente ditos - sequências chamadas "codificantes", que carregam as instruções genéticas necessárias para a síntese de proteínas. Os outros 98% foram apelidados de "DNA lixo", por não ter função conhecida no funcionamento do organismo. Um apelido que sempre incomodou muita gente.

Agora, mais de uma década de ciência depois, chega a redenção. Mais de 30 trabalhos publicados simultaneamente em quatro revistas científicas de peso, incluindo Nature e Science, descartam em definitivo o apelido pejorativo, confirmando várias evidências de que o "DNA lixo" não é lixo coisa nenhuma. Os resultados, oriundos do projeto Enciclopédia de Elementos de DNA (Encode, na abreviatura em inglês, que significa "codificar"), sugerem que mais de 80% do genoma humano têm algum tipo de função bioquímica.

"Eu diria que o termo DNA lixo pode ser, definitivamente, jogado no lixo", diz a geneticista Mayana Zatz, coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP), que nunca simpatizou com o apelido.

Dentro do que se chamava de lixo, os pesquisadores do Encode encontraram uma vasta riqueza de sequências reguladoras, que não codificam proteínas diretamente, mas interagem de alguma forma com o funcionamento dos genes.

Algumas funcionam como interruptores, ligando-os ou desligando-os. Outras como um botão de volume, aumentando ou diminuindo a intensidade com que determinados genes se expressam em determinadas células, em determinadas situações. "O genoma é muito mais complexo do que imaginávamos dez anos atrás", afirma Mayana.

"O que eles estão confirmando é uma suspeita de muito tempo, de que essas sequências não gênicas também têm um sentido biológico enorme", reforça Dirce Maria Carraro, diretora do Laboratório de Genômica e Biologia Molecular do Hospital A.C. Camargo. "É óbvio que elas não estão aí no genoma por acaso."

As pesquisadoras destacam a importância dos resultados para estudos clínicos que tentam relacionar mutações e outras formas de alterações genéticas à saúde. Milhares de alterações já foram identificadas nos últimos anos que afetam a ocorrência ou a manifestação de doenças, mas a grande maioria delas não está nos genes (nos 2% do genoma que codificam proteínas), o que já era um forte indício de que o "DNA lixo" tinha alguma função relevante dentro das células - como confirmado agora pelo projeto Encode.

Complexidade. Os resultados acrescentam uma nova camada de complexidade aos estudos do genoma humano e mostram que é preciso muito mais do que uma simples sequência de letrinhas para entender como ele funciona. E que os genes são apenas parte de uma história que pode ser contada de diversas maneiras. Mayana prevê que os resultados vão abrir muitas perspectivas de tratamento, apontando para novos alvos genéticos fora das regiões codificadores e melhorando o entendimento de como o genoma funciona de uma forma geral.

Uma das áreas médicas que certamente tirará proveito dos dados é a oncologia, na qual a relação entre a genética e a fisiologia se dá de forma mais acentuada. Muitas das regiões reguladoras mapeadas pelo Encode referem-se a sequências de DNA que são transcritas em RNA mensageiro, como ocorre com os genes; só que em vez de "ordenar" a síntese de proteínas fora do núcleo da célula, esse RNA vai atuar sobre o próprio genoma, carregando ordens que vão modular o funcionamento dos genes. São os chamados fatores de transcrição, que pesquisadores já sabem ter implicações diretas no tratamento de vários tipos de câncer.

Dirce ressalta, porém, que os resultados publicados agora não terão aplicação imediata na medicina. Assim como foi o caso com o sequenciamento do genoma humano, os resultados do Encode servem como uma plataforma de conhecimento básico, sobre a qual novas pesquisas poderão ser construídas com finalidades mais aplicadas. Algo que levará tempo.

"É uma quantidade imensa de informações. Vai demorar um pouco para darmos sentido prático a tudo isso", diz a pesquisadora. "Teremos de decifrar devagarzinho todos esses achados."

Segundo uma reportagem que acompanha os trabalhos na revista Nature, se todas as sequências genéticas produzidas pelo projeto fossem impressas na escala de mil pares de bases por centímetro quadrado, o resultado seria uma pilha de papel com 30 quilômetros de comprimento e 16 metros de altura.

Leitura suficiente para muitos e muitos anos de pesquisa.