Título: A fragmentação da Europa
Autor: Barros, José Roberto Mendonça de
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/09/2012, Economia, p. B6

JOSÉ ROBERTO MENDONÇA DE BARROS, ECONOMISTA, SÓCIO DA MB ASSOCIADOS - O Estado de S.Paulo

O longo processo de integração das economias da Europa está lentamente se revertendo. Se isso não for interrompido logo, a possibilidade de ruptura do euro vai crescer, trazendo um gigantesco problema para a Comunidade Europeia.

O movimento recente do Banco Central Europeu (abrindo mão de sua preferência nas dívidas soberanas e criando um programa de compras ilimitadas de títulos sob certas condições de adesão, desenhado para retirar a pressão sobre Espanha e Itália) busca concorrer para este fim. A integração fiscal, regulatória e bancária proposta pela Alemanha, embora tenha inspiração quase oposta à do BCE, também.

Antes de perguntar se essas ações poderão ser bem-sucedidas, é importante entender como agem as forças da fragmentação, que operam de várias formas.

Antes de tudo, o Sul é deficitário. Seus desequilíbrios fiscais contribuíram para um permanente excesso de absorção, especialmente via consumo, que se transformou em déficits externos. A dívida pública se elevou, bem como o custo de seu carregamento. A dependência de financiadores externos ampliou-se.

É preciso, pois, fazer um forte ajuste fiscal (bem como outras reformas), que gerem superávits primários necessários para reduzir as necessidades de financiamento. Embora tenha demorado um pouco, é lícito dizer que todos os governos da região partilham hoje desta convicção.

Entretanto, tal ajuste - que inclui cortes de gastos e elevação de tributos -, como estão fazendo atualmente França, Espanha e Itália, derruba o crescimento econômico e a arrecadação. O resultado é que a dívida soberana cai muito pouco ou até se eleva como proporção do PIB. Em consequência, o prêmio de risco sobe e os financiadores começam a fugir, colocando em dúvida a própria sustentabilidade da dívida e a solvência nacional. Vimos este fenômeno em outubro do ano passado (quando o BCE reagiu criando o programa LTRO, que concedeu ao sistema bancário mais de 1 trilhão em crédito barato) e agora, mais uma vez, antes das decisões da semana passada.

Nesta situação, a fragmentação começa a operar de várias maneiras.

1. O PIB do Sul cai e o do Norte não, ou cai muito menos. A distância econômica entre as regiões vai se alargar.

2. No Sul, o custo da rolagem da dívida explode, enquanto no Norte ele tende a zero. Nos meses recentes, o título de dez anos da Espanha pagou até mais que 7% ao ano e o da Itália, mais de 6%, enquanto o da Alemanha recuou para 1.6% ao ano.

3. O investimento público desaparece no Sul, mas pode até se elevar no Norte. Isso vai reforçar as diferentes trajetórias de crescimento.

4. Os gastos para convergência econômica dentro dos países caem drasticamente no Sul (Sicília, regiões espanholas). Sabe-se que nesta área sempre existiram desperdícios. Entretanto, é também certo que divergências regionais poderão se ampliar, levando inclusive a proposições populistas e separatistas.

5. Os bancos das regiões mais fortes, mas não apenas eles, buscam reduzir suas exposições a riscos maiores. Dados levantados pelo Financial Times mostram que os bancos alemães reduziram, entre o primeiro trimestre de 2008 e igual período deste ano, sua exposição a Portugal, Espanha, Itália, Grécia e Irlanda em 300 bilhões, enquanto que os bancos franceses diminuíram 200 bilhões. Como consequência, os bancos locais têm de buscar no BCE crescente proporção de seu financiamento. Em agosto, os bancos da Itália, Espanha, Irlanda e Grécia haviam sacado mais de 750 bilhões do Banco Central Europeu.

6. Mais apertados, os bancos do Sul terão mais dificuldades de fazer empréstimos, exceto para clientes muito seguros, o que em geral exclui empresas médias, pequenas ou novas. Temos, portanto, créditos baratos no Norte e altos prêmios no Sul, especialmente para setores muito dependentes de mercados locais. O impacto diferencial sobre a atividade é evidente

7. Pessoas e empresas estão transferindo depósitos do Sul da Europa para praças no Norte, especialmente Alemanha, mesmo que para aplicar a juros próximos de zero. Com menos depósitos, os bancos vão continuar a depender cada vez mais do BCE e poder emprestar cada vez menos. O aperto do setor privado só vai aumentar. O mecanismo europeu de pagamentos, chamado de Target 2, realiza as transferências, que resultam em passivos dos bancos centrais do Sul e créditos dos bancos do norte contra o BCE. Estes últimos já chegam a 1 trilhão.

8. Com a redução do PIB, do crédito, dos gastos públicos e dos mercados, a recuperação da competitividade do Sul fica muito mais difícil. Não há estímulos para investimentos em novas tecnologias, que permitam elevar significativamente a produtividade ou suportar os gastos para o lançamento de novos produtos. É certo que a queda nos salários, a maior eficiência produtiva (nos marcos da tecnologia existente) e alguma desvalorização do euro melhorarão a posição competitiva do Sul. Entretanto, este último ponto vale para a região como um todo.

9. Outros países ainda poderão entrar com pedidos de ajuda. Fala-se, por exemplo, na eventual necessidade de algum suporte para bancos da Eslovênia.

Esses elementos de fragmentação vão continuar a operar, mesmo no cenário mais favorável. O movimento recente do Banco Central Europeu foi um grande passo na direção correta, e acalmou os mercados. Entretanto, mesmo o mais otimista dos analistas concorda que o BCE, antes de tudo, ganhou tempo. Um importante ajuste econômico terá ainda de ser feito. Entretanto, não existe concordância entre os países sobre qual o rumo a seguir.

Há, portanto, uma corrida no tempo entre a viabilização de ações que podem trazer a estabilização e o crescimento da região e os riscos políticos e econômicos trazidos pela fragmentação. Estes são formidáveis e apresentam pelo menos dois tipos de problemas.

O primeiro é que algum país, entre os dezessete que compõem a zona do euro, decida, ou seja levado, a sair da união monetária, detonando algum tipo de efeito cascata. O candidato mais óbvio é a Grécia, por causa da sua incapacidade crônica de cumprir suas metas de ajuste. Entretanto, uma hipótese possível seria a saída de um pequeno país credor, que viesse a concluir que a conta de permanecer na união monetária esteja ficando muito elevada. Sendo credor, poderia fazer o movimento sem dever nada a ninguém. Seria algo parecido com o ocorrido com o Brasil na crise da dívida externa dos anos oitenta: os bancos regionais americanos, que tinham pouca exposição à nossa dívida, simplesmente jogaram como perda seus empréstimos e foram cuidar da vida. No caso atual, a Finlândia poderia chegar a esta decisão.

Os riscos políticos decorreriam de propostas populistas salvacionistas, de nacionalismos ou separatismos. Lemos todos os dias nos jornais notícias dessas possibilidades, alimentadas crescentemente pela desesperança quanto ao futuro nos países devedores.

A manutenção da zona do euro como é hoje me parece cada vez mais difícil.