Título: Até que ponto o câmbio pode ser usado como instrumento?
Autor: Pastore, Affonso Celso
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/10/2012, Economia, p. B4

O Brasil nunca esteve em um regime puro de flutuação cambial. Sempre ocorreram intervenções pesadas nos mercados à vista e/ou futuro de câmbio. Nos últimos meses, contudo, o governo deixou claro que não quer nem o real abaixo de R$ 2,00/US$, nem chegando próximo de R$ 2,10/US$. Embora alguns prefiram batizá-lo de regime “bandas de flutuação” esse é, de fato, um regime de câmbio fixo. Que consequências isso acarreta sobre: a inflação; as taxas de juros; e o crescimento econômico? No caso brasileiro, a única razão que possivelmente tenha atraído o governo a sustentar a taxa cambial em um nível mais depreciado é a busca do aumento da competitividade das exportações de manufaturas, favorecendo a indústria. Com isso, o câmbio foi guindado à categoria de instrumento de política econômica. Mas quem afeta a competitividade da indústria é o câmbio real, e a longo prazo este tende a retornar ao equilíbrio, que não é afetado pelo câmbio nominal. Porém, as mesmas evidências empíricas que suportam essa proposição indicam que o “longo prazo”, neste caso, é realmente muito longo, e que em períodos mais curtos, movimentos no câmbio nominal têm efeitos reais. Ou seja, em prazos mais curtos, a taxa cambial pode ser usada como um instrumento de política econômica. Para sustentar o câmbio nominal em um nível mais depreciado, o Banco Central tem de estar disposto a comprar quantidades ilimitadas de moeda estrangeira, mas mesmo assim, nem sempre consegue atingir o objetivo. Por exemplo, desde 2010 o Banco Central adicionou mais de US$170 bilhões ao estoque de reservas internacionais, e mesmo assim, até recentemente o real se valorizou. Para que as intervenções do Banco Central adquiram maior eficácia para determinar o nível do câmbio nominal, têm de ser acompanhadas de controles sobre os ingressos de capitais. Nas últimas semanas, o Banco Central não tem tido a necessidade de realizar intervenções de maior porte, nem o governo teve de acentuar os controles sobre ingressos de capitais, sustentado o real em um nível acima de R$ 2,00/US$ simplesmente através da sinalização de seu objetivo.

A razão para isso está no encolhimento dos ingressos de capitais. No período que se inicia um ano antes e termina um ano depois do anuncio do QE2, entravam no Brasil perto de US$ 70 bilhões por ano de investimentos em ações e em renda fixa, enquanto que atualmente esses ingressos já encolheram para próximo de US$ 10 bilhões, continuando a mostrar uma tendência declinante. Não há, atual-mente, nenhum “tsunami monetário”. Mas o que ocorrerá caso cresçam os ingressos de capitais, quer porque o QE3 empurre mais capitais para dentro das fronteiras brasileiras, quer porque esses capitais sejam atraídos por uma aceleração do crescimento brasileiro e/ou uma elevação da taxa doméstica de juros? A adesão ao câmbio fixo significa expor-se à “trindade impossível”, que é a impossibilidade de ter, ao mesmo tempo: câmbio fixo; plena mobilidade de capitais; e controle monetário. Um país como Cingapura pode optar por ancorar o nível de preços apenas no câmbio fixo mantendo a conta de capitais no balanço de pagamentos completamente aberta, porque a âncora cambial é suficiente para manter a sua inflação dentro da meta. Ao usar a âncora cambial, aquele país renunciou ao controle monetário, e sua taxa doméstica de juros é determinada pela taxa internacional, um resultado que certamente atrairia o Brasil. Mas, contrariamente, ao que ocorre em Cingapura, a estrutura econômica brasileira não permite ancorar a inflação só no câmbio fixo, precisando de um grau elevado de autonomia no manejo da política monetária. Por isso, para que se mantenha dentro do regime de câmbio fixo, o Brasil precisará de controles sobre ingressos de capitais em graus variados de intensidade, determinados pelo estado da economia. Neste curto período de convivência com o câmbio fixo, não foi preciso aumentar os controles sobre ingressos de capitais. Mas o que ocorrerá caso os ingressos aumentem?

O governo terá, então, de fazer opções que podem ser muito duras. Por exemplo, suponha que o crescimento nos ingressos de capitais ocorra por causa de um surto de crescimento econômico, que atraia uma forte entrada de capitais em ações. Entre 2010 e 2011 entraram no Brasil US$ 45 bilhões por ano em ações, capitalizando empresas. Não será fácil optar por controles que inibam ingressos para a compra de ações quando eles são necessários para o crescimento da economia. Para um país como Cingapura, essa opção não se coloca, porque devido ao excesso de poupanças domésticas sobre os investimentos, aquele é um país exportador de capitais. Mas este não é o caso do Brasil, cujas poupanças domésticas são inferiores aos investimentos, transformando-o em importador de capitais, que são necessários para financiar os déficits em contas correntes. Já que o câmbio real pode persistir mais depreciado, e já que ele melhora a competitividade das exportações e favorece a indústria, por que não depreciar ainda mais o câmbio nominal? Tomemos a taxa cambial de R$ 2,40/US$, que é mencionada por muitos empresários que visitam os edifícios de alguns Ministérios, em Brasília, como sendo a “taxa cambial ideal” para o Brasil.

Isso representa-ria uma depreciação de 20% com relação ao câmbio de RS$ 2,00/US$ praticado atualmente, e há quem afirme que a inflação não se moveria nem mesmo com esta depreciação. Em cima de minha mesa de trabalho mantenho bem visível uma frase em latim:nullius in verba. Este é o motto da Royal Society, de Londres, lembrando que não se deve acreditar apenas na palavra de nenhum mestre, por maior que seja o seu prestígio. O que vale são as evidências empíricas. A estimativa mais conservadora de repasse do câmbio para o IPCA que eu conheço mostra que com uma depreciação cambial de mais 20%, adicionaríamos um ponto porcentual à taxa de inflação em 2013. Se partirmos das projeções do Banco Central no último Relatório de Inflação, em 2013 teremos o IPCA crescendo perto de 6%, e se partir-mos da mediana das projeções no mercado financeiro chegaríamos a 6,5%. A menos que o Banco Central aceite inflações ainda mais distantes da meta, seria obrigado a elevar a taxa de juros em resposta a essa hipotética depreciação. A utilização do câmbio como um instrumento de política econômica pode ter benefícios, e é isso que o governo vem procurando. Mas tem também custos, e é bom considera-los cuidadosamente antes de enveredar por um caminho que acentuará os problemas, em vez de resolvê-los.