Título: Comissão pedirá mudança no ensino das escolas militares
Autor: Arruda, Roldão
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/10/2012, Nacional, p. A6
Paulo Sérgio Pinheiro diz que recomendação foca no "golpe de 1964"; para general, o que houve foi um "contragolpe" a favor da democracia
Roldão Arruda
A Comissão Nacional da Verdade, que investiga crimes ocorridos durante a ditadura militar, vai recomendar às Forças Armadas alterações no currículo de ensino das academias militares. O foco da recomendação será a questão do golpe de 1964, segundo informações do sociólogo Paulo Sérgio Pinheiro, um dos sete integrantes da comissão, instalada em maio.
"As academias militares continuam a conviver com o mito de que o golpe de 1964 foi uma revolução democrática para impedir o comunismo", disse Pinheiro em entrevista ao programa Roda Viva, que foi gravado no fim de semana e será exibido hoj e à noite pela TV Cultura. Segundo o sociólogo, existe um descompasso entre a forma como a sociedade encara o que houve no dia 31 de março, com a interrupção da ordem democrática constitucional, e o que as academias militares ensinam.
"Quando a sociedade inteira faz esse percurso, as instituições de ensino nas Forças Armadas brasileiras não podem continuar repetindo todos esses mitos sobre o que aconteceu entre 1964 e 1985", disse. "Não pode haver essa esquizofrenia. As Forças Armadas continuam fazendo um ensino que não reconhecemos mais. É um anacronismo total."
O sociólogo observou que a Comissão da Verdade, que deve apresentar o relatório de suas investigações até 2014, não tem poder para intervir diretamente na estrutura de ensino das academias. Não deixará, porém, de fazer recomendações nessa direção."É evidente que haverá recomendações precisas sobre esses programas de ensino", afirmou.
O programa de ensino nas academias militares já foi criticado em mais de uma ocasião. Enquanto esteve à frente da Secretaria Especial de Direitos Humanos, o ministro Paulo Vannuchi apontou o que ele considera um anacronismo entre a visão da sociedade e a das academias sobre os fatos de 1964. Até hoje, porém, os militares se recusam a introduzir mudanças.
Consultado pelo Estado, o general da reserva Durval de Andrade Néri, ex-diretor do Clube Militar do Rio e conselheiro da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (Adesg), contestou ontem as declarações do sociólogo. "O que nós tivemos em 1964 foi um contragolpe em defesa da democracia, uma ação dos militares para evitar o golpe de esquerda que levaria à comuni- zação do Brasil", afirmou. "Essa verdade está na história, nos documentos e nos tribunais."
Guerra fria. Ainda segundo o general, é preciso lembrar que o mundo vivia em plena guerra fria, dividido entre "dois grandes impérios" - o comunismo e o socialismo. O golpe de esquerda no Brasil, na avaliação dele, fazia parte da estratégia da extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), que liderava o bloco socialista, para atingir os Estados Unidos, líder do outro bloco.
"Queriam transformar o Brasil numa outra Cuba, para atingir o império americano. Aqui seria uma base da União Soviética, assim como haveria bases na Colômbia e na Bolívia", disse. "Isso não aconteceuporque o povo exigiu uma atitude das Forças Armadas para impedir esse golpe comunista. Nós militares cumprimos a nossa missão. Os criminosos estão aí. Foram anistiados e, com essa Comissão da Verdade, querem mais dinheiro."
No programa que será exibido hoje pela TV Cultura, Pinheiro também abordou a questão dos arquivos militares sobre o período da ditadura. "Não acredito que tudo foi queimado", afirmou, referindo-se às freqüentes afirmações de chefes militares de que a documentação sobre fatos ocorridos entre 1964 e 1985 teriam sido queimados. "Isso é conversa para boi dormir."
Segundo o sociólogo, existe, um diálogo permanente entre a comissão e o Ministério da Defesa a respeito destes arquivos. "É um diálogo franco e construtivo", disse.
Na entrevista, com duração de cerca de uma hora, Pinheiro defendeu que a principal missão da comissão será a reconstituição histórica do período. "Uma sociedade não pode viver enganada a respeito de sua própria história", disse. "Essa vai ser a maior contribuição da comissão para o País."