Título: Mensalão e República
Autor: Rodrigues, Ricardo Vélez
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/11/2012, Espaço aberto, p. A2

Tive uma grata surpresa com o julgamento da Ação Penal 470 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A nossa democracia parece ter reencontrado a vitalidade, que parecia fenecida por causa da crise em que o Poder Executivo, sobranceiro à lei, tentou comprar definitivamente o apoio do Poder Legislativo mediante a prática de corrupção sistemática, ao ensejo do episódio que o denunciante do esquema, o ex-deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ), denominou como "mensalão".

O nome pegou, para desespero do ex-presidente Lula da Silva, do ex-ministro José Dirceu et caterva. Foram julgados e condenados, se não todos, pelo menos alguns dos responsáveis mais representativos do sinistro esquema. A História encarregar-se-á de julgar os que escaparam, a começar pelo chefe, que, pelo teor das investigações e dos depoimentos, "sabia de tudo".

É de Oliveira Vianna a previsão de que a redenção das instituições republicanas, no Brasil, viria pela mão do Poder Judiciário. Vítima da "política alimentar" - nome dado pelo sociólogo fluminense ao esquema de clientelismo e corrupção que se apossou da vida pública desde tempos que remontam à derrubada do Império -, a República acordaria da catalepsia em que a privatização patrimonialista do poder pelas oligarquias a fez mergulhar. A independência do Poder Judiciário, segundo Oliveira Vianna, no livro Instituições Políticas Brasileiras (1949), garantiria as liberdades civis; asseguradas estas, o País poderia pensar na conquista das liberdades políticas.

Ora, os pareceres dos juízes do Supremo Tribunal puseram na pauta da política dois princípios fundamentais. Em primeiro lugar, todos devem respeitar, sem exceções, a lei e seu marco arquetípico, a Constituição. Em segundo lugar, os que governam não podem agir utilizando a máquina do Estado em benefício próprio. Dois princípios de ética pública que, meridianos, voltaram a presidir o espaço republicano, a partir dos pareceres dos magistrados da nossa Suprema Corte.

Que a sociedade respirou aliviada com a ação patriótica do STF o deixam claro as opiniões dos leitores na mídia eletrônica e impressa, bem como as espontâneas manifestações de aplauso dos cidadãos quando encontram um dos nossos magistrados, em que pese a cerrada política armada pela petralhada, de denuncismo de "golpe da magistratura e da imprensa".

No esquema do mensalão marcaram encontro dois vícios da política: o tradicional "complexo de clã" e a ausência de espírito público, bases do patrimonialismo. Esses dois vícios, entrelaçados como as caras da mesma moeda, fazem com que os atores políticos ajam única e exclusivamente em benefício próprio e das suas clientelas, privatizando as instituições. Nisso o Partido dos Trabalhadores (PT) e coligados se mostraram eficientes "como nunca antes na História deste país".

A esses dois vícios vieram juntar-se duas tendências da cultura política moderna. A primeira, o jacobinismo (inspirado na filosofia de Rousseau, no século 18), segundo o qual a organização da política, nos Estados, deve pautar-se pelo princípio da unanimidade ao redor da "vontade geral" (identificada com o legislador e imposta por seus seguidores, os "puros"), sendo excluída qualquer oposição. O segundo princípio negativo diz respeito ao "messianismo político" - pensado no início do século 19 por Henri-Claude de Saint-Simon e continuado por seu discípulo Augusto Comte.

Ora, na nossa organização republicana se juntaram, com o correr dos séculos, numa síntese perversa, esses dois princípios, bem como os vícios balizadores do patrimonialismo. O jacobinismo e o messianismo político reforçaram-se, dramaticamente, na contemporaneidade, com a tendência cientificista do marxismo (inspiradora dos ideólogos petistas), que passou a pensar a política em termos de hegemonia partidária, à maneira gramsciana.

Na História republicana terminou se consolidando, à sombra das variáveis mencionadas, um modelo identificado com a prática do despotismo. Castilhismo, getulismo, tecnocratismo autoritário, lulopetismo, eis os resultados desse amálgama nada republicano.

Como dizia Alexis de Tocqueville referindo-se à França de 1850, a face da República viu-se desfigurada pelas práticas despóticas. No Brasil, a res publica virou "coisa nossa", num esquema mafioso de minorias encarapitadas no poder, que fazem o que bem entendem, de costas para a Nação, mal representada num Poder Legislativo que se contempla a si próprio e zela quase que exclusivamente pela manutenção de seus próprios privilégios.

Com uma agravante, atualmente: se nos momentos anteriores havia autoritarismo, este se equilibrava com uma proposta tecnocrática bem-sucedida (como nos momentos getuliano e do ciclo militar) ou com um respeito quase sagrado pelo Tesouro público (como no castilhismo). Restou-nos o assalto desavergonhado aos cofres da Nação, em meio ao mais descarado compadrio sindical.

Ecoam ainda as graves palavras com que um dos ministros do Supremo Tribunal Federal caracterizou, dias atrás, o mal que tomou conta do Brasil. "Formou-se na cúpula do poder, à margem da lei e ao arrepio do Direito, um estranho e pernicioso sodalício, constituído por dirigentes unidos por um comum desígnio, um vínculo associativo estável que buscava eficácia ao objetivo espúrio por eles estabelecido: cometer crimes, qualquer tipo de crime, agindo nos subterrâneos do poder como conspiradores, para, assim, vulnerar, transgredir e lesionar a paz pública".

Gravíssima situação que a nossa Suprema Corte encarou com patriotismo e coragem. Esperamos que essa benfazeja reação seja o início de um saneamento completo das instituições republicanas.