Título: Os lagostins do Mercosul
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Fonte: O Estado de São Paulo, 03/12/2012, Notas e Informações, p. A3

Os lagostins argen­tinos são muito competitivos, mui­to maiores que os brasileiros, garan­tiu em tom irado a presidente Cristina Kirchner, diante da colega Dilma Rousseff, no encerra­mento da reunião da União Indus­trial Argentina (UIA) e da Confede­ração Nacional da Indústria (CNI), no hotel-spa de Los Cardales, a 77 quilômetros de Buenos Aires, na quarta-feira. Foi a referência mais importante da presidente argentina ao comércio de seu país com o Bra­sil, numa conferência programada oficialmente para cuidar de assuntos de integração produtiva e de comér­cio. A importância atribuída aos la­gostins pode parecer um tanto exage­rada, quando se pensa no tamanho, nas possibilidades e nos problemas de relacionamento das duas econo­mias. Mas o desabafo presidencial to­cou em pelo menos um ponto rele­vante: competitividade. Nesse quesi­to os dois países vão mal, e a condi­ção da indústria argentina é visivel­mente muito pior que a da brasilei­ra. O protecionismo cada vez mais amplo tem sido a resposta política da Casa Rosada, com prejuízos cres­centes para os produtores brasilei­ros, nenhum ganho de produtivida­de para os argentinos, dispensados de se mexer, e danos cada vez maio­res para o Mercosul, condenado a ser um clube da mediocridade.

Em Brasília, as autoridades têm to­lerado esse tipo de política. Já chega­ram a aconselhar os empresários bra­sileiros a aceitar o jogo e negociar co­tas e acordos de restrição. Alguém de vez em quando encena um protes­to, como fez a presidente Dilma Rousseff em seu discurso em Los Cardales. Mas as palavras são rara­mente acompanhadas de ações. Retaliações ocasionais duram pouco e são normalmente suspensas em tro­ca de quase nada.

Ao agir dessa forma, o governo bra­sileiro descuida tanto dos interesses correntes dos produtores nacionais quanto do futuro do Mercosul. Criado para servir como plataforma de in­tegração, modernização e inserção global, esse bloco foi amesquinhado nos últimos dez anos pela devastado­ra aliança do kirchnerismo com o petismo. Nesse acasalamento, cada um dos parceiros contribuiu com uma mistura de terceiro-mundismo anacrônico, populismo enfeitada com adereços de esquerdismo e uma indisfarçável atração pelos arranjos autoritários. Essa atração explica o empenho dos dois governos em abrir espaço para a Venezuela do caudilho Hugo Chávez, num golpe realizado logo depois da suspensão, muito contestável, de um dos sócios fundado­res do bloco, o Paraguai.

Na inútil conferência da UIA e da CNI, o ministro do Desenvolvimen­to, Indústria e Comércio Exterior, Fernando Pimentel, tentou deixar em segundo plano as desavenças comerciais e convocar os parceiros para um empreendimento mais de acor­do com a agenda original do Mercosul. Brasil e Argentina, disse ele, podem fomentar a criação do terceiro maior mercado do mundo, depois do chinês e do americano. De fato, os dois países talvez pudessem provocar esse efeito a partir do Mercosul, se fossem administrados com mais seriedade e alguma competência.

A integração seria o caminho, com a formação de cadeias produtivas e a exploração das possibilidades de complementação. Mas até a referên­cia prática citada pelo ministro pro­va exatamente o contrário de sua te­se. "O que já fazemos no setor auto­motivo é o exemplo da integração que devemos estender a outros seto­res", disse Pimentel.

O acordo automotivo bilateral é um resumo das mazelas do Merco­sul. Foi refeito várias vezes, com mu­danças ditadas sempre pelos interes­ses do lado argentino, despreparado para competir. A passagem do regi­me especial de trocas para a libera­ção total do comércio automotivo de­veria ter ocorrido há muitos anos, mas continuará adiada, ainda por um bom tempo.

O ministro dificilmente encontra­ria exemplos menos deprimentes. Sem estratégias sérias e políticas de longo prazo, o isolamento atrás de barreiras protecionistas será a tenta­ção constante dos governos do Bra­sil e da Argentina. Os dois países poderão até formar um grande mercando, mas para produtos de uma eco­nomia de terceira classe. A de segun­da classe é a dos países empenha­dos em alcançar os melhores padrões internacionais.