Título: O significado da maioria
Autor: Cavalcanti, Nicolau da Rocha
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/12/2012, Espaço aberto, p. A2

A Procuradoria Re­gional dos Direi­tos do Cidadão em São Paulo en­tende que a men­ção a Deus nas cé­dulas de real fere o caráter laico do Estado e solicitou à Justiça Federal que delas seja retirada a frase "Deus seja louvado". Al­guns defendem a sua manuten­ção, argumentando que o fato de a maioria da população brasi­leira acreditar em Deus justifi­caria a menção e que a sua exclu­são não significaria neutralida­de, mas ateísmo.

Que o Estado brasileiro é lai­co ninguém discute. Mas qual é o seu significado?

A democracia não é um che­que em branco para a maioria e a neutralidade do Estado em matéria religiosa é um claro li­mite. O critério majoritário - o voto, a opinião pública - é insufi­ciente para definir muitas ques­tões numa sociedade plural.

Por outro lado, a menção a Deus numa cédula, bem como um crucifixo num tribunal, não é uma declaração da fé do Esta­do. Não é uru manifesto proselitista de um credo religioso. Se o seu significado fosse esse, logi­camente seria inconstitucional a sua referência.

Não é fácil chegar a um equilí­brio. Nessa matéria, não há con­senso nem mesmo entre os crentes. Ainda que de outra or­dem, também não houve unani­midade nos anos 30 do século passado quanto à instalação do Cristo Redentor na cidade do Rio de Janeiro. Até mesmo al­guns católicos foram contrá­rios à iniciativa: defendiam a ideia de que o valor da estátua fosse doado a obras sociais.

A impossibilidade de um con­senso numa sociedade plural significa que a posição de­va prevalecer sempre? Retire­mos tudo o que possa soar a reli­gioso. Será isso convivência? Se­rá isso respeito à diferença? Se­rá essa a solução mais avançada de compreensão pública que conseguimos formular?

Algum tempo atrás, a União Europeia decidiu manter os crucifixos em repartições públicas sob a fundamentação de que para retirá-los se deveria provar que a sua presença tem relevância no exercício da liberdade re­ligiosa, isto é, seria necessário mostrar como um crucifixo li­mitaria a prática de outras reli­giões e de outras opções vitais. Essa decisão é muito interessante para uma sociedade plural, não tanto pela solução concreta dada, mas por reconhecer que uma possível agressão à sen­sibilidade não significa por si só desrespeito à liberdade religiosa ou à neutralidade estatal. O debate público não se deve pautar por sensibilidades. Nem tudo o que se deseja é passível de ser exigido. Por exemplo, uma pessoa não pode postular a proibição de um beijo gay em público sob o argumento de que fere a sua sensibilidade. O mero incômodo numa socieda­de plural não é parâmetro. O Es­tado deve-se pautar por crité­rios de justiça política, generali­záveis para todos os cidadãos.

Significa que o Estado é frio e despreza as diversas sensibilida­des? Não. A lógica é exatamente a inversa: por respeito à sensibi­lidade dos outros, cada um não pode impor a sua. Isso é convi­vência, isso é democracia.

Mas, afinal, qual posição pre­valecerá? Será que, na prática, a solução é imortalizar as opções históricas, engessando a cultu­ra de um país? Certamente que i não. Trata-se de verificar o significado percebido pela socie­dade e, posteriormente, anali­sar se tal conteúdo fere a neces­sária neutralidade estatal.

E aqui entra em jogo a maioria, o sentir majoritário de uma nação. Não se trata de que a maioria predomine sobre as mi­norias, mas de verificar qual sig­nificado aquela sociedade con­fere às referências religiosas. Essa é uma visão aberta: os obje­tos, as referências religiosas não têm um significado unívo­co, com independência da cul­tura, do local e do tempo. O con­teúdo simbólico é definido pe­lo modo como a sociedade o percebe majoritariamente. Não se postula uma pesquisa I de opinião para saber se a maio­; ria está de acordo coma referência a Deus nas cédulas, mas de saber o sentido que a maior par­te da sociedade atribui a essa menção. E - a partir daí, a partir ; do valor simbólico atribuído pe­la maioria - o Poder Judiciário deve ponderar se tal conteúdo está de acordo com o caráter laico do Estado.

Dessa forma, a maioria não define diretamente a legitimi­dade da menção a Deus nas cé­dulas. Ela atua em outro âmbi­to, num âmbito pré-jurídico: a maioria define o significado dos objetos, das referências.

Caso uma minoria possa atri­buir o significado aos objetos, às referências religiosas, caire­mos numa situação de arbitra­riedade. Poder-se-ia proibir qualquer costume ou prática so­cial sob o argumento de que fe­re a neutralidade estatal. Por exemplo, dar um caráter religio­so ao uso da minissaia ou do chapéu para que, com base ne­le, se postule a sua proibição. Em resumo, a ponderação so­bre se tal objeto ou menção fere a imparcialidade estatal depen­de das concretas circunstân­cias culturais de cada país. Por exemplo, a resposta que os Esta­dos Unidos darão a respeito da legitimidade da menção à con­fiança em Deus nas suas cédu­las pode ser diversa da brasilei­ra. E as duas soluções poderão respeitar a neutralidade estatal

Uma atitude política neutra não pode fechar os olhos para o fato de que a maior parte da so­ciedade brasileira acredita, sim, em Deus. E isso não signifi­ca justificar por si só a menção a Deus nas cédulas de real, mas. um passo anterior: entender o seu contexto.

Como afirma o professor ju­deu Joseph Weiler, da New York University School of Law, a laicidade do Estado e a liber­dade religiosa dos seus cida­dãos não colocam a religião no nível de um fato meramente privado. E possível encontrar, dentro de um ambiente republi­cano, significados legítimos pa­ra um crucifixo num tribunal ou para o "Deus seja louvado" nas cédulas - por exemplo, a busca da justiça, o respeito aos mais fracos, a lembrança de que existem outros bens além do monetário e tantos outros valores que somente contri­buem para uma sociedade mais aberta e plural

ADVOGADO, É PRESIDENTE DO CENTRO DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA(CEU)