Título: O furo
Autor: Bucci, Eugênio
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/12/2012, Espaço aberto, p. A2

Mensalão pa­gou despesa pessoal de Lu­la, diz Valé­rio. Foi como a ventania ra­diativa de uma bomba atômica que a manchete de terça-feira do Estado varreu as melhores redações do País. A notícia de que Marcos Valério, em depoi­mento prestado à Procuradoria-Geral da República em setem­bro, acusa o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva de ter se be­neficiado pessoalmente dos re­cursos ilícitos arrecadados pelo esquema do mensalão obrigou os principais veículos jornalísti­cos do Brasil a reconhecer o furo espetacular dos repórteres des­te jornal Felipe Recondo, Alana Rizzo e Fausto Macedo. Imedia­tamente a pauta da imprensa brasileira virou caudatária da manchete do Estadão.

Não sem motivo. Embora não fosse inédita a informação de que Marcos Valério, depois de condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), vinha procurando as autoridades pa­ra, com base num regime de de­lação premiada, conseguir redu­zir seu período de cadeia, ainda faltavam as provas de que ele realmente tinha disparado sua metralhadora giratória. Até aqui ninguém tinha visto o do­cumento oficial com suas acusa­ções. Pois foi isso que Felipe Re­condo, Alana Rizzo e Fausto Ma­cedo trouxeram a público. A par­tir de agora não há mais espaço para que um ou outro se esqui­ve do mal-estar, alegando que esse ou aquele órgão de impren­sa inventa frases que Valério nunca teria pronunciado. Ele as pronunciou todas - e mais algu­mas outras. A prova de que fa­lou o que falou, irrefutável, se encontra impressa em folhas de papel timbrado do Ministério Público e acaba de ser revelada pela reportagem do Estadão. Ponto final. Ninguém mais po­de dizer que é boato, que é in vencionice. É preto no branco: o operador do mensalão acusa o ex-presidente da República de ter levado dinheiro.

Temos, então, uma certeza e urna dúvida. A certeza é de que é verdade que Marcos Valério fa­lou o que falou. Quanto à dúvi­da, essencial, esta se resume no seguinte: será verdade tudo o que ele falou?

Tanto pela certeza quanto pe­la dúvida, o quadro político alte­rou-se completamente. Não que se vá tomar como fato o que afirma um agente criminoso condenado a cumprir pena atrás das grades. Ele não tem credibilidade - ao menos, não a de antemão. Suas afirmações só podem ser recebidas com des­confiança, para dizer o mínimo. ""Delação premiada para salvar o próprio couro é coisa de cana­lha", disse Roberto Jefferson, o delator inaugural do mensalão. Ninguém há de dar crédito fácil e rápido ao arquiteto financeiro-publicitário do maior escânda­lo do governo Lula. A propósi­to, a notícia do Estadão de ter­ça-feira não estimula a confian­ça ingênua e desavisada, apenas demonstra que as acusações do condenado não são produto de inferências especulativas irres­ponsáveis de jornalistas de opo­sição, mas são falas reais, que de fato existem. Eis o que altera por inteiro o quadro político.

Nesse ponto, o depoimento de Valério abre uma fissura de morte entre os condenados do mensalão: uns insultam os ou­tros, as versões se contradizem, a coisa ali está muito malpara­da. Existe algo de mais podre ainda dentro de que já existia de muito podre na Esplanada dos Ministérios.

Daqui por diante a indiferen­ça deixa de ser uma tática segura. Os que preferiam o silêncio não têm mais margem para ca­lar. O próprio Lula esboçou uma primeira reação: "Não pos­so acreditar em mentira. Não posso responder mentira". A presidente da República, Dilma Rousseff, que observava um dis­tanciamento de estadista em re­lação aos rancores e rumores emanados do submundo do cri­me, tachou de "lamentável" o que, segundo ela, constitui uma "tentativa de destituir (p ex-pre­sidente) da imensa carga de res­peito que o povo brasileiro lhe tem". Num comentário breve, telegráfico, o presidente do ; STF, Joaquim Barbosa, indaga­; do se o ex-presidente deveria : ser investigado, limitou-se a uma frase: "Creio que sim". Opositores de plantão come­çam a considerar chamar mais gente para depor.

Se fosse só isso, já seria muito. Mas há mais. Marcos Valério afirma que recebeu uma ameaça de morte do hoje presidente do Instituto Lula, Paulo Okamot­to, que também revidou: "Eu ameacei ele de morte? Por que vou ameaçar ele de morte? Está nos autos que eu ameacei ele de morte? Duvido! Duvido que ele tenha dito isso". Conforme o próprio Estado informou em sua edição de ontem, em repor­tagem de Andrei Netto e Fernan­do Nakagawa, da Agencia Esta­do, Okamotto disse não ter lido a reportagem de terça passada. Afirmou também que "Lula não lê o Estadão". Sobre as denún­cias de que o ex-presidente teria participado de uma reunião pa­ra autorizar os empréstimos fraudulentos que viabilizaram o mensalão, orientou os repórte­res: "Meu nome não é Lula. Se teve esse negócio, eu não estava nessa reunião. Tem que pergun­tar ao Lula um negócio desses".

Uma observação: na fala de Paulo Okamotto podemos com­preender um pouco melhor os efeitos que a manchete de terça feira provoca na cena política. "Tem que perguntar ao Lula." De fato, é a ele que certas per­guntas devem ser dirigidas. Por mais doloroso e indigesto que seja - a presidente Dilma tem razão em apontar o desgaste que essa investida de Marcos i Valério impõe ao seu antecessor -, Lula precisará pensar nu­i ma estratégia de comunicação : menos lacônica.

E há mais ainda. Ontem, ou­tra revelação complicada foi manchete no Estado: BB cobra­va "pedágio" de agências para o PT, afirma Valério. Será verdade? Só um trabalho investigativo nas documentações do pró­prio Banco do Brasil e em ou­tras frentes poderá responder.

O furo de terça-feira vai tra­zer mais desdobramentos nos próximos dias. Para a imprensa o trajeto que se abre é delicado: sem dar crédito a quem não me­rece e sem macular a honra de quem pode estar sendo acusa­do injustamente, terá de reme­xer o lixo, que contém material explosivo, e puxar, de lá de den­tro, o fio da meada da verdade.

JORNALISTA, E PROFESSOR DA ECA-USP E DA ESPM