Título: O STF e a República
Autor: Grau, Eros Roberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/12/2012, Espaço aberto, p. A2

Em entrevista ao Estadão (13/11, H8), José Murilo de Carvalho ob­serva que os oito anos de Lula fica­rão marcados em nossa História pelo avanço na inclusão social, o que chama de democracia; mas não se destacará, continua, pelo que chama de República. Gomo sou cidadão deste país e, por is­so, devo respeito e acatamento aos julgamentos do Poder Judi­ciário, nada posso concluir se­não que a res publica foi violada, E de tal sorte que o dano não é compensado pelo avanço.

De mais a mais, sentido críti­co bem atilado, esse avanço ha­veria de vir, em qualquer cir­cunstância, como exigência do processo de legitimação do mo­do de produção social dominan­te. Podem dizer que os termos desta conclusão denunciam uma maneira antiga de racioci­nar. Não importa que seja velha, se ainda explica o permanente discreto fascínio de quem domi­na e os interesses que conti­nuam a prevalecer mesmo quan­do a inclusão social se amplia.

Mais importante é afirmar­mos o quanto devemos de res­peito e acatamento, enquanto ci­dadãos, ao Poder Judiciário, em especial, hoje e sempre, ao Su­premo Tribunal Federal (STF). Em especial porque o STF, de modo diverso do que andaram a dizer por aí, não surpreendeu por ser independente. Simples­mente foi o que haveria de ser.

Num tempo, como o nosso, em que o Estado ainda é outra face da sociedade civil, o STF na­da mais permanece a ser senão uma porção dela. O Estado é uma totalidade indivisível. Não pode ser fissurado em facções, grupos ou poderes. Assim se prestará ao seu fim, que instru­menta ordem, segurança e paz, para o bem do mercado. A sepa­ração dos Poderes, enunciada como "lei eterna", oculta o fato de que o Estado, para ser Esta­do, é e há de ser uma totalidade.

A organização estatal em fun­ções viabiliza, aprimorando-o, seu funcionamento. Aqui e ali há interpenetração delas, mas o Legislativo produz as leis, o Exe­cutivo as aplica e o Judiciário nos julga (e a eles também). To­dos deveriam vestir um manto de autoridade. Chamo-o assim, manto de autoridade, não por­que detenham poderes. Autori­dade é algo diferente do poder. E o saber-se o que se deve fazer, serenamente. Os romanos cha­mavam-na de auctoritas. Por is­so - porque os magistrados, pa­ra o serem, são os que mais dela necessitam - os cidadãos a eles devem acatamento e respeito. A eles e a seus julgamentos.

Magistrados são para ser res­peitados. Lembro episódios no­táveis, do tempo em que a discri­ção era indissociável da pessoa do juiz e as transmissões das ses­sões de julgamento pela televi­são não os havia banalizado. Um processo que viera às manche­tes dos jornais, em São Paulo, subira ao Tribunal de Justiça, distribuído a um desembarga­dor. Conta-me seu filho, hoje septuagenário, como eu, que uma sua irmã indagou à mesa do

Qualquer insurgência contra o Supremo desmente a democracia, pretende golpeá-la

almoço de domingo: "Papai, o que você acha?". O bom juiz res­pondeu: "Não sei, minha filha, ainda não li os autos". Era assim.

Nenhum membro de tribunal in­sistia no óbvio, justificando-se, pretendendo dar satisfações "ao público", como se ouviu, pe­la TV Justiça um dia destes.

Juízes de tribunais superiores são indicados pelo Executivo e o Legislativo participa de sua esco­lha. O juiz prudente, indepen­dente, tem para si ter sido indica­do para o cargo que ocupe não pelo Sarney, pelo Itamar, pelo FHC ou pelo Lula, com inusitável intimidade, porém, singela­mente, pelo presidente da Repú­blica. Ao tribunal deve chegar sem que a ele tenha sido candida­to, sem que faça alarde da pró­pria pureza. Quem a oferece, es­sa pureza que a palavra enuncia, já a perdeu. Notório saber e repu­tação ilibada, no caso do Supre­mo e onde sejam recomendá­veis, são para ser conservados durante o exercício do cargo. De reputação ilibada é aquele que, ao caminhar pela aia, merece o olhar respeitoso dos que pas­sam. Apenas. Juízes e ministros de tribunais não são para ser elo­giados. Não fazem mais do que a obrigação quando aplicam o di­reito positivo e a Constituição.

Os juízes não estão lá, nos seus cargos, para produzir equidade. Nem para fazer justiça com as próprias mãos. São servos da Constituição e das leis, servos de um sistema de normas jurídicas que se presta a assegurar um mí­nimo de calculabilidade e previsi­bilidade na prática das relações sociais. Precisamente nesse sen­tido a História avançou, limitan­do o poder da monarquia patri­monial, para afirmar a institui­ção do poder legislativo dos Par­lamentos. Eis aí uma das tarefas primordiais do Estado moderno: a produção de uma ordem jurídi­ca que garanta certeza e seguran­ça jurídicas. Sem elas não haverá como vivermos em liberdade.

Por isso causa espanto - mais do que espanto, causa temores, apreensão - qualquer reação de desacato, e seja lá de quem for, ao quanto já decidiu, e venha a decidir, o STF no julgamento do chamado "mensalão". E assim seria em qualquer caso, ainda que a res publica não tivesse sido conspurcada, violada.

Nos tempos de menino, quan­do brincávamos de mocinho e bandido, era razoável que vez e outra mudássemos de torcida. Hoje, não. Se pretendermos vi­ver honestamente, sem agredir os outros, contribuindo para o bem de todos, será indispensável acatarmos, com dignidade, as de­cisões, quando irrecorríveis, do Poder Judiciário. Não por que fa­çam justiça. Pois é certo que, co­mo dizia Kelsen, a justiça absolu­ta só pode emanar de uma autori­dade transcendente, só pode emanar de Deus; temos de nos contentar, na Terra, com alguma justiça simplesmente relativa, que deve ser vislumbrada em ca­da ordem jurídica positiva e na situação de paz e segurança por esta mais ou menos assegurada.

Qualquer insurgência contra esta face do Estado que o STF é afronta à ordem e à paz social, prenuncia vocação de autorita­rismo, questiona a democracia, desmente-a, pretende golpeá-la. Por isso é necessário afirmar­mos, em alto e bom som, o quan­to de respeito e acatamento deve­mos ao Poder Judiciário e em es­pecial, hoje e sempre, ao Supre­mo Tribunal Federal. Sobretudo porque - repito-o - de modo di­verso do que andaram a dizer por aí, o STF não surpreendeu por sua independência. Simplesmen­te foi o que e como haveria de ser.

PROFESSOR TITULAR APOSENTADO DA USP, FOI MINISTRO DO STF