Título: Derrota de Cristina
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Fonte: O Estado de São Paulo, 08/12/2012, Notas e informações, p. A3

Dado o retrospec­to de agressiva ingerência da presidente Cris­tina Kirchner nas instituições do Estado argentino, chega a sur­preender pela ousadia a decisão de um tribunal federal, a Câma­ra Civil Comercial de Buenos Ai­res, em defesa dos direitos de um querelante que o kirchnerismo considera seu inimigo núme­ro um e contra o qual move há quatro anos uma pertinaz cam­panha de aniquilamento. Trata-se do Grupo Clarín, o maior con­glomerado de mídia do país, que edita o jornal de mesmo nome, o mais importante órgão argenti­no de imprensa. De aliado - e be­neficiário - do então presidente Néstor Kirchner, o Clarín pas­sou a fazer-lhe oposição desde a sua ofensiva, afinal malograda, contra o setor rural, em 2008.

A decisão judicial a que nos re­ferimos prorrogou, até a palavra final dos tribunais, a vigência .de uma liminar obtida pela empre­sa sobre a constitucionalidade de dois artigos da Lei de Mídia promulgada em 2009 com o ale­gado objetivo de democratizar a comunicação social. Na realida­de, a lei nada mais é do que um instrumento da Casa Rosada pa­ra consolidar o seu já não des­prezível controle sobre o setor e amordaçar de vez o jornalismo independente na Argentina. O que o ditador Juan Domingo Pe­rón fez pela força, em 1951, con­tra o jornal La Prensa e ao expro­priar o Clarín, a sua seguidora tenciona fazer sob um manto le­gal feito sob medida. A prorroga­ção foi concedida anteontem, na véspera do término da vigên­cia da liminar, o 7D (7 de dezem­bro), na terminologia oficial, quando o governo convocaria ele próprio uma licitação para desmembrar o grupo.

Pela Lei de Mídia, uma empre­sa de comunicação poderá acu­mular até 24 licenças de rádio e televisão (o Clarín tem mais de 250) e a sua cobertura não pode­rá ultrapassar 35% da população das cidades em que operar (as estações de rádio da holding al­cançam 41% dos argentinos; os seus canais de TV aberta, 38%; de TV a cabo, 58%). A lei proíbe ainda que uma concessionária de emissora convencional opere também no mercado de TV pa­ga. No 7D, aqueles dos 21 grupos do setor na Argentina que já não tivessem apresentado planos pa­ra se adequar às novas regras, no prazo de um ano, correriam o risco de ser fatiados compulso­riamente. Para Cristina, portan­to, a sentença representou uma acachapante derrota. Semanas atrás, decerto para prevenir o pior, o governo tentou forçar a troca de juízes da Câmara Civil e Comercial.

Pode-se aquilatar a intensida­de da fúria kirchnerista pela tru­culência das manifestações do oficialismo. Antes ainda da divul­gação do resultado, ninguém menos do que o ministro da Jus­tiça, Julio Alak, disparou que, se a Câmara não votasse com o go­verno, os seus membros seriam tratados como se estivessem em "estado de rebelião" - passíveis portanto de "julgamento políti­co", na ameaça do senador Mar­celo Fuentes, um dos principais porta-vozes da presidente no Congresso. Divulgada a decisão, o titular da Autoridade Federal de Serviços de Comunicação, Martin Sabatella, não só acusou os juízes que a subscreveram de terem sido subornados pelo Cla­rín com "Viagens a Miami", co­mo considerou o seu ato "uma vergonha". Em nenhuma demo­cracia madura, um figurão do go­verno se permitiria vociferar ta­manha enormidade.

Até a data antes tida como fa­tal, três outros grupos, além do Clarín, não haviam informado o que fariam e quando para se desfazer parcialmente dos seus ativos. Mas nada conta tanto pa­ra a Casa Rosada como quebrar o mais poderoso desses conglo­merados, no que seria "a mãe de todas as batalhas", conforme o linguajar grandiloqüente de seus ocupantes. Ontem, o go­verno recorreu à Suprema Cor­te para desfazer a prorrogação da liminar. Valeu-se do recém-instituído per saltum, mecanis­mo pelo qual ações que trami­tam em segunda instância po­dem ser transferidas para a mais alta Corte do país. Resta saber se ecoará ali o protesto da Comissão Nacional de Indepen­dência Judicial, divulgado na véspera, contra a mão pesada do kirchnerismo, traduzida em "fatos que agridem institucio­nalmente um poder do Esta­do". A crescente impopularida­de de Cristina talvez incentive o Supremo argentino a exami­nar a matéria de forma compatí­vel com a reputação de autono­mia que ainda preserva.