Título: A crise de energia e suas causas
Autor: Goldemberg, José
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/12/2012, Espaço aberto, p. A2

O sistema energé­tico brasileiro foi montado ao longo dos últi­mos cem anos e funcionou rela­tivamente bem até recentemen­te: o País gera quase toda a sua eletricidade em usinas hidrelé­tricas, uma fonte limpa e reno­vável de energia, e se tornou também quase autossuficiente na produção de petróleo.

A eletricidade foi introduzida no Brasil por empresas estran­geiras (e uns poucos empreen­dedores nacionais) no fim do sé­culo 19 e só começou a dar pro­blemas quando, em meados do século 20, o governo federal im­pediu reajustes das tarifas que compensassem os investimen­tos. Investir em eletricidade dei­xou, então, de ser atraente para o setor privado.

A solução foi a criação da Eletrobrás e empresas estatais nos Estados, verdadeiras agências de desenvolvimento regional que - com recursos públicos -construíram usinas hidrelétri­cas. As empresas estatais do se­tor elétrico revelaram, no iní­cio, grande dinamismo, mas se tornaram burocráticas e pesa­das. A tentativa do governo Fer­nando Henrique Cardoso de pri­vatizá-las só funcionou parcial­mente em razão de interesses das corporações que se forma­ram dentro e em torno delas. As distribuidoras, como a Light, fo­ram privatizadas, mas a trans­missão e a geração, de modo ge­ral, permaneceram em empre­sas estatais.

No caso do petróleo, o País era totalmente dependente de importações até meados do século 20, mas a Petrobrás conse­guiu nos levar quase à autossuficiência, o que foi um grande avanço. Contudo a euforia na­cionalista criada pela descober­ta de petróleo a grandes profun­didades e no pré-sal levou a em­presa a um programa gigantes­co de obras que não era capaz de realizar sozinha, o que nos le­vou de volta à importação de combustíveis, a obras atrasadas e a uma queda do valor das ações da Petrobrás. Como o go­verno se recusa a reajustar os preços dos combustíveis desde 2007, a situação atual é que a em­presa importa gasolina a preços internacionais - que subiram muito nos últimos anos - e ven­de essa mesma gasolina a pre­ços congelados no nível de 2007, perdendo dinheiro e pon­do-a no vermelho.

Uma consequência imediata dessa situação é a asfixia e mor­te lenta do Programa Brasileiro de Álcool, produzido a partir da cana-de-açúcar. Esse é o me­lhor programa de energia reno­vável que surgiu no mundo nos últimos 20 anos. Sucede que, co­mo o petróleo e derivados subi­ram de preço internacionalmen­te, os insumos utilizados na produção de álcool - como fertili­zantes - subiram também. Hoje é mais caro produzir um litro de etanol do que cinco anos atrás. Impedir o reajuste do preço do álcool, de forma que ele possa competir favoravelmente com a gasolina, torna inviável a sua produção, que já caiu de 27 bilhões de litros por ano para 22 bilhões em 2012. Com a atual política de preços dos deriva­dos de petróleo sofre a Petro­brás, com prejuízos crescentes, e sofrem os produtores de eta­nol, pondo em risco mais de 1 milhão de empregos que essa atividade agroindustrial priva­da criou.

Os três pilares da política energética do País - eletricida­de, petróleo e etanol - estão, portanto, em crise, causada por políticas equivocadas do gover­no da União adotadas nos últi­mos anos.

Como pode isso acontecer de­pois de um século de relativo sucesso?

A resposta é relativamente simples: uma mistura de políti­ca e incompetência.

A influência política revela-se de duas formas:

Um nacionalismo exacerba­do na exploração do petróleo, afastando parcerias com empre­sas internacionais com compe­tência na área de pesquisa e pro­dução em águas profundas e uma obsessão pela ideia da "modicidade tarifária" no custo da eletricidade, que tenta

• baixar as tarifas quando esses custos são crescentes e diferenciados. Os leilões para contratação de energia elétrica são sempre realizados pelo menor preço, independentemente de on­de e da forma como ela é produ­zida, o que é um contrassenso, da mesma forma que seria exi­gir que qualquer tipo de carne (filé mignon ou costela) tivesse o mesmo preço no mercado.

As demandas por modicida­de tarifária originam-se nos se­tores industriais eletrointensivos, como o de alumínio, que desejam tarifas mais baixas, e em setores populistas do gover­no, que tentam tratar a energia elétrica como se fosse uma "Bolsa-Família".

Essa política levou o governo a baixar uma medida provisória fixando exigências para a pror­rogação por mais 30 anos das concessões de exploração das usinas hidrelétricas como um meio de baixar as tarifas. Tal me­dida se propunha a eliminar o custo exagerado - na visão do governo - da geração, uma vez que os investimentos feitos pe­las concessionárias já foram pa­gos. Todas as questões relativas a acertos de contas e compensa­ções pela extinção das atuais concessões parecem ter sido le­vadas a efeito por técnicos alheios aos problemas reais do setor, como se pode ver, por exemplo, quando a Eletrobrás reivindica compensações de cerca de R$ 30 bilhões e o gover­no estima que ela só tem direito a R$ 13 bilhões.

Ao que tudo indica, enfrenta­mos no setor de energia uma situação parecida coríl a que le­vou o presidente da França Georges Benjamin Clemen­ceau, durante a i.a Guerra Mundial, a declarar que a guerra ué uma coisa demasiadamente grave para se deixar nas mãos dos militares" - no caso presen­te, dos tecnocratas do setor energético.

Seria preciso que setores mais amplos da sociedade fos­sem ouvidos a respeito dessas questões, um dos quais é o Con­selho Superior de Política Ener­gética - praticamente desativa­do nos últimos dez anos e que se tornou, na prática, um órgão de homologação de decisões do governo.

PROFESSOR EMÉRITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP), FOI PRESIDENTE DA COMPANHIA ENERGÉTICA DE SÃO PAULO (CESP) E MEMBRO DO CONSELHO SUPERIOR DE POLÍTICA ENERGÉTICA ICSPE)