Título: Corrupção ideológica
Autor: Rosenfield, Denis Lerrer
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/12/2012, Espaço aberto, p. A2

A corrupção des­vendada no escri­tório da Presidên­cia da República em São Paulo, no marco da Opera­ção Porto Seguro, comandada pela Polícia Federal, mostra em ação uma forma de corrupção com marcas distintivas, que não podem ser simplesmente equiparadas à corrupção dita patrimonialista do Estado brasilei­ro. O mesmo vale para justifica­tivas de que o PT, no dizer de dirigentes, caiu no erro de fazer o que todos os partidos fazem, como ocorreu no mensalão.

As tentativas de nivelar essas formas de corrupção, tudo redu­zindo a um mesmo sistema, ter­minam por encobrir o que as di­ferencia, produzindo uma espé­cie de geleia geral. E essa geleia geral é extremamente pernicio­sa, pois a sua resultante é uma desresponsabilização dos ato­res envolvidos, indivíduos ou organização partidária.

No caso da Operação Porto Seguro, salta à vista o nível dos envolvidos: 1) a chefe do escritó­rio da Presidência, Rosemary Nóvoa de Noronha, que se apre­sentava como "namorada" do ex-presidente Lula; 2) os ir­mãos Paulo e Rubens Vieira, di­retores, um da Agência Nacio­nal de Águas (ANA), o outro da Agência Nacional da Aviação Ci­vil (Anac); 3) José Weber Holan­da, advogado-geral adjunto da União. Note-se que não se trata de personagens secundários, denominação que procura des­qualificá-los, como se o PT não estivesse envolvido nessas indi­cações. A desqualificação tem o objetivo de produzir uma espé­cie de desresponsabilização par­tidária, como se o partido nada | tivesse que ver com membros seus no alto escalão.

Pior ainda, Lula tem alguém de sua intimidade amplamente envolvida em crimes. E bem ver­dade que a vida privada do ex-presidente lhe diz exclusiva­mente respeito, o que não signi­fica que suas repercussões em tráfico de influência, pareceres forjados e falsidade ideológica não devam ser consideradas em suas consequências propriamente públicas. A vida privada ; do ex-presidente Lula tornou­-se pública pelos ilícitos e crimes cometidos por sua "namorada" e companheiros.

O caso dos irmãos Vieira é também emblemático, pois se trata de diretores de agências re­guladoras, que deveriam zelar pelo cumprimento dos contra­tos e pelo interesse dos cidadãos em geral, em atividade técnica de cunho suprapartidário. Ora, com a chegada de Lula ao governo federal, essas agências foram literalmente aparelhadas partidariamente, perdendo pro­gressivamente a sua função. O que estamos observando é o re­sultado desse processo de apro­priação partidária do Estado, ga­nhando a corrupção um matiz propriamente ideológico.

José Weber Holanda tampou­co é um personagem qualquer, atuando como vice-ministro e falando em nome do titular. Tra­ta-se, é evidente, de um cargo da maior importância na estru­tura estatal.

Logo, não podem ser todos es­ses personagens considerados como "secundários" ou "me­quetrefes", pois tal considera­ção seria um abuso para com os cidadãos deste país, incapazes de discriminar quem é quem. Na verdade, um desrespeito à coisa pública, à república, e à cidadania em geral. A questão central é: como chegamos a isso?

Todos os personagens em causa têm uma história comum de militância petista, tendo as­cendido na hierarquia estatal graças à sua adesão partidária. Seu "mérito", por assim dizer, é partidário, o que significa dizer que o PT não se pode eximir dessa também sua responsabilida­de. Se não houvesse tal volúpia de aparelhamento do Estado, provavelmente não estaríamos observando esses malfeitos.

Convém alertar para outro fa­to, cuja conotação ideológica é ainda mais nítida. O PT, em sua formação e mesmo em seus pro­longamentos em certas instân­cias e setores partidários atuais, caracterizou-se por uma postura anticapitalista, consi­derando, no dizer de Rousseau e Marx, a propriedade privada e o lucro como uma espécie de roubo. Da mesma maneira, o mercado sempre foi visto com desconfiança, concebido desor­denado e carente de regras. Em suas versões mais radicais, ali­mentadas por certos "intelec­tuais" petistas, mercado seria equivalente a "mercado negro".

Se o mercado é a mesma coi­sa que "mercado negro", é por­que, para eles, não seria consti­tuído por um conjunto de re­gras. Não lhes ocorre que o mer­cado se define por relações con­tratuais, pela confiança, pelo respeito a esses mesmos con­tratos, pela liberdade de esco­lha, pela livre-iniciativa e pela liberdade em que esta está ancorada. Define-se, também, pe­la existência de tribunais que julguem infrações contratuais, pela elaboração de um sistema de leis que garanta a segurança jurídica, pela participação dos eleitores na escolha dos seus di­rigentes, pela competição comercial e partidária, e assim por diante. Então, se o mercado é tido por "mercado negro", as portas estão abertas para a cor­rupção ideológica, numa espé­cie de vale-tudo.

Nesse sentido, a corrupção para proveito pessoal, como é o caso do grupo de Rosemary, não deixa de ter uma conotação ideológica, mesmo em seus as­pectos mais íntimos e prosai­cos. Isso se torna ainda mais cla­ro na corrupção partidária. Ambas estão enraizadas numa men­talidade de cunho anticapitalista. Segundo essa concepção, o mercado nada mais é que uma forma de enriquecimento ilíci­to e, na verdade, selvagem. Por­tanto, tudo seria permitido nu­ma sociedade capitalista, aí incluindo a corrupção e, em particular, a corrupção política e ideológica. Os corruptos se­: riam "iguais" aos outros.

Quero dizer com isso que es­sa forma de corrupção atual se funda numa concepção anti­mercado, conforme a qual tudo seria permitido. As causas des­sa corrupção não estão no "sis­tema", como continua sendo apregoado, mas numa mentali­dade antimercado, antidireito de propriedade e anti-Estado de Direito, que tudo nivela ideo­logicamente. E é esse nivela­mento ideológico que abre es­paço para essa associação entre corrupção e política.

PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS