Título: Lula - privacidade versus interesse público
Autor: Franco, Carlos Alberto di
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/12/2012, Espaço aberto, p. A2

Frequente mente in­sinuada na cober­tura dos jornais, a relação amorosa de Rosemary No­voa de Noronha, ex-chefe do gabinete da Presi­dência da República em São Pau­lo,, com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva finalmente foi escancarada pela Folha de S.Paulo em recente edição: Po­der de assessora vem de relação íntima com Lula cravou a cha­mada de primeira página.

A jornalista Suzana Singer, ombudsman daquele jornal, fez oportuna análise da matéria. Sem usar a palavra "amante", a Folha conta que nas 23 viagens internacionais em que Rose­mary acompanhou Lula a então primeira-dama, Marisa Letícia; nunca estava presente. Segundo a reportagem, havia um esquema especial que permitia o j acesso de Rose à suíte presidencial nessas escapadas. Seria um j relacionamento de 19 anos, iniciado quando ela era bancária e " ele, candidato derrotado à Presidência da República. "A Folha invadiu a privacidade de Lula? Sim. Era necessário? Sim." As respostas de Suzana Singer às interrogações éticas, curtas e di­retas, são redondas. Concordo plenamente.

O jornalismo brasileiro, ao contrário da imprensa norte-americana, por exemplo, tende a preservar a intimidade dos ho­mens públicos. As escapulidas dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Figueiredo, conhecidas e comentadas nas rodas de jornalistas, nunca mi­graram para as manchetes dos jornais. O mesmo se pode dizer do comportamento da impren­sa com relação a Fernando Hen­rique Cardoso, que teria tido um filho fora do casamento. A mídia, embora ciente, preser­vou a privacidade do ex-presi­dente. O episódio foi revelado pela Folha de S. Paulo quando ele, já viúvo e ex-presidente, re­conheceu o rapaz como filho. Os episódios, todos, poderiam ser "interessantes" para o públi­co (despertavam curiosidade), mas não eram de interesse pú­blico legítimo. Não estava em jogo dinheiro público,

O caso Lula, no entanto, é bem diferente. De acordo com a Polícia Federal, Rosemary con­seguiu, entre outras coisas, colo­car, em postos estratégicos do governo amigos corruptos que vendiam pareceres jurídicos fa­voráveis a empresários. Lula, ainda presidente da República, prestou - mesmo que não sou­besse disso - favores à quadrilha apadrinhada por Rose. Por sua influência, indicou os irmãos Paulo e Rubens Vieira para a di­reção, respectivamente, da Agência Nacional de Águas (ANA) e da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Os irmãos Vieira, ligados a gente do gover­no, passaram a vender facilida­des a empresários que depen­diam de decisões de Brasília.

Rose, gabando-se de sua rela­ção íntima com Lula, tinha in­fluência no Banco do Brasil (BB). Trabalhou pela escolha do atual presidente do BB, Aldemir Bendine, e indicou direto­res da instituição. Como foi pos­sível que Rose, uma antiga secre­tária do PT, acumulasse tanto poder, a ponto de influir em se­tores nevrálgicos do governo? Tudo isso, rigorosamente de in­teresse social, só ganhou dimen­são pública graças ao trabalho da imprensa.

Só isso, e não é pouco, já justi­ficaria a invasão da privacidade do ex-presidente Lula. A defesa do direito à intimidade não po­de ser usada para impedir a investigação e revelação pela prensa de informações de evi­dente interesse público. O direito à privacidade não pode ser jamais um escudo protetor.

Cito, amigo leitor, um texto belíssimo e de grande atualida­de, A imprensa e o dever da verda­de, de Rui Barbosa. Recomen­do-o vivamente a todos os que se preocupam com a ética informativa e as relações entre o jornalismo e o poder. Não resisto: caro leitor, à vontade de aguçar " sua curiosidade.

"A imprensa" dizia Rui Barbo­sa, "é a vista da Nação. Por ela é que a Nação acompanha o que lhe passa ao perto e ao longe, en­xerga o que lhe malfazem, devas­sa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam, ou rou­bam, (...) O poder não é um an­tro: é um tablado. A autoridade não é uma capa, mas um farol. A política não é uma maçonaria, e

sim uma liça. Queiram, ou não queiram, os que se consagraram ávida pública, até à sua vida par­ticular deram paredes de vidro. Agrade, ou não agrade, as consti­tuições que abraçaram o gover­no da Nação pela Nação têm por suprema esta norma: para a Na­ção não há segredos; na sua ad­ministração não se toleram esca­ninhos; no procedimento dos seus servidores não cabe misté­rio; e toda encoberta, sonegação ou reserva, em matéria de seus interesses, importa, nos ho­mens públicos, traição ou des­lealdade aos mais altos deveres do funcionário para com o car­go, do cidadão para com o país."

Um abismo separa os ideais de Rui Barbosa dos usos e costu­mes da vida pública brasileira. Informação jornalística rele­vante é, frequentemente, consi­derada um abuso ou um despro­pósito. A informação não é um enfeite. É o núcleo da missão da imprensa e a base da democra­cia. Homens públicos invocam o direito à privacidade como for­ma de fugir da investigação da mídia. Entendo que o direito à privacidade não é intocável. Po­de cessar quando a ação pratica­da tem transcendência pública. É o caso dos governantes ou candidatos a cargos públicos. Os as­pectos da vida privada que pos­sam afetar o interesse público não devem ser omitidos em no­me do direito à privacidade.

Não pode existir uma separa­ção esquizofrênica entre vida privada e vida pública. Há atitu­des na vida privada que prenun­ciam comportamentos na vida pública. E o leitor e o eleitor têm o direito de conhecê-las. Se assim não fosse, tudo o que te­ríamos para ler na imprensa se­riam amontoados de declara­ções emitidas pelas fontes inte­ressadas. E há informações da vida privada - e o caso Rose-Lu­la é emblemático - que revelam inequívoca mistura entre o pú­blico e o privado. A imprensa tem, então, não só o direito, mas o dever de invadir a vida privada do homem público. É uma clara questão de interesse da sociedade.

DOUTQR EM COMUNICAÇÃO PELA UNIVERSIDADE DE NAVARRA, É DI­RETOR DO DEPARTAMENTO DE CO­MUNICAÇÃO DO INSTITUTO INTER­NACIONAL DE CIÊNCIA SOCIAIS E-MAIL; DIFRANCO@IICS.ORG,BR