Título: Aonde irá o PT?
Autor: Fausto, Sérgio
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/12/2012, Espaço aberto, p. A2

Nenhum outro partido tem raízes populares comparáveis às do PT. Não há outro líder político brasileiro com a história de Lula. Essas duas credenciais, no entanto, têm sido utilizadas para negar, encobrir e/ou justificar práticas flagrantemente contrárias ao próprio ideário republicano de que o partido e seu líder maior se diziam os mais legítimos defensores. Não se trata de práticas episódicas, mas de ações sistemáticas pelas quais instituições e recursos públicos são postos a serviço dos interesses do PT e de seus membros.

É uma tragédia política, porque todo país civilizado precisa de uma esquerda verdadeiramente republicana e democrática. E o PT, que poderia representá-la, afasta-se cada vez mais dessa possibilidade. O partido adquire semelhanças crescentes com o velho PRI mexicano pela interpenetração de partido, Estado e sindicatos e com o peronismo argentino pelas mesmas razões, acrescidas da mística criada em torno de seu líder maior.

A possibilidade histórica de o PT representar uma esquerda democrática e republicana se perdeu - resta saber se definitivamente em meio à sua transformação num partido pragmático e organizado, O velho PT sectário, fechado dentro da esquerda, e consumido por uma vida interna tão vibrante quanto entrópica, cedeu lugar a uma organização partidária orientada para acumular recursos financeiros, ganhar eleições e governar com amplas alianças.

A experiência emgovernos estaduais e municipais de grandes cidades tornou o partido mais realista e moderado. O acesso a fundos e empregos públicos em cargos de confiança substituiu, em boa medida, para uma parte importante da mili-tancia, os estímulos morais que a crença ingênua num difuso ideal socialista oferecia ao petis-mo original. O horizonte político-teórico convergiu para o projeto de colocar o uLula lá". Toda discussão sobre socialismo e democracia, ética e política foi posta à margem.

Quando o PT chegou ao governo federal, abriram-se portas ainda mais largas para fortalecer a máquina partidária, organizações e movimentos ligados ao partido. Além disso, criaram-se perspectivas de ascensão social sem precedentes para quadros e militantes partidários. Por meios form almente legais (nomeação para cargos de confiança, transferência de parte da contribuição obrigatória às centrais sindicais, etc.) ou inteiramente ilícitos, o governo Lula atuou com desenvoltura, em todas as frentes, para contemplar o conjunto dos apetites. O presidente foi pródigo, pelo menos na complacência com o malfeito. Como houve maior redução da desigualdade e da pobreza em seu governo, qualquer crítica passou a ser "udenismo golpista".

O paradoxo desse processo é Não dá para se esconder atrás da história e da sociologia para justificar tudo isso que está aí que a incorporação do PT ao governo e às elites políticas - um elemento indispensável e positivo da democratização do País ao invés de fortalecer, enfraqueceu as instituições e a ética republicanas. Um conservador cínico diria que esse foi o custo inevitável para domesticar o partido. Para quem não é uma coisa nem outra, cabe fazer duas perguntas: era realmente inetitá-; vel? E, mais importante, devemo-nos conformar com esse custo, mesmo sabendo que ele se pode perpetuar e crescer?

Há exemplos históricos recorrentes de que a ascensão de novos grupos sociais à elite política vem acompanhada de aumento da corrupção. Esta frequentemente ganha caráter sistemático quando a democratização da elite se faz pela entrada de partidos de massa ecorporações sindicais. Dessa perspectiva, a Europa é a exceção no mundo ocidental Nos Estados Unidos, essa foi a regra, em particular nas grandes cidades industriais do norte, como Nova York e Chicago. Na América Latina também, salvo no Chile e no Uruguai.

Essa constatação, porém, não isenta os atores políticos de responsabilidade. No caso do PT, sobressaem dois movimentos concomitantes ao longo de ; sua história de um lado, seus líderes e sua militância, com honrosas exceções, jamais assumiram como patrimônio coletivo da democracia brasileira a construção institucional feita a partir da Constituição de 1988 (valeram-se dessas instituições, isso sim, seletiva e instrumentalmente, como é notório na relação esquizofrênica do partido com o Ministério Público e a imprensa); de outro, curvaram-se à lógica da conquista e manutenção do poder quando esta se chocou com princípios éticos em episódios cruciais da trajetória do partido.

Nunca será demais lembrar de Paulo de Tarso Venceslau, militante histórico da esquerda e então secretário de Finanças de São José dos Campos, que em 1995 levou ao conhecimento de Lula denúncias sobre um esquema de corrupção orquestrado por Roberto Teixeira, empresário compadre do líder maior do partido, em prefeituras do PT. Para apurar as denúncias criou-se uma comissão que recomendou punição a Teixeira. Nada foi feito. Três anos depois, Venceslau seria expulso do partido. Dos membros daquela comissão, o único a se insurgir foi Hélio Bicudo. E se outros tivessem tido a sua coragem? E se Lula tivesse dado o exemplo, cortando na própria carne? A verdade é que não dá para se esconder atrás-da história e da sociologia para justificar tudo isso que está aí.

Coragem cívica anda em falta. Não se espere isso dos appa-ratchiks da máquina petista. O que mais constrange é o silêncio dos intelectuais próximoá ao partido. Uma exceção é Eugênio Bucci. Leia-se e releia-se o seu O inferno astral da estrela branca" (29/11," Az). Diz ele que o PT "precisa arcar com a responsabilidade de fortalecer a democracia que ajudou a conquistar". O difícil é que isso implica enfrentar a herança de Lula e José Dirceu, sem os quais, para o bem e para o mal, o PT não seria o que é hoje.

Uma coisa é certa: o PT não mudará enquanto estiver no Planalto. Caberá aos eleitores fazê-lo descer novamente à planície. Pois só a derrota ensina.