Título: Senado sacramenta mamata
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/11/2012, Notas e informações, p. A3

Brasília é o hábitat natural da elite da classe política, re­presentada pelos nobres parlamenta­res federais. Vivem ali muitos desses ilustres representantes do povo - pelo jeito, a maioria - numa espécie de mundo da fantasia que construíram para seu deleite, apartado da realidade cotidiana e fre­quentemente conflitante com o sen­so comum. Vivem indiferentes ao fa­to de, do outro lado da Praça dos Três Poderes, o Judiciário dar inequí­vocas demonstrações de que o País está perdendo - se já não perdeu - a paciência com o comportamento ominoso e ultrajante dos maus homens públicos que se julgam no direito de inventar uma nova "ética" no trato da coisa pública. E cometem, sem o menor pudor, nova e escandalosa afronta à probidade, jogando a conta do abuso no colo do contribuinte.

O leitor atento certamente se dará conta de que já leu o texto acima. E verdade. Foi o que escrevemos neste espaço há menos de dois meses, no dia 30 de setembro, sob o título En­quanto isso, no Senado..., quando a Mesa Diretora da Casa, à frente o no­tório José Sarney, anunciou a inten­ção de pagar ela mesma - ou seja, transferindo o prejuízo para o contri­buinte - o calote de R$ 11 milhões aplicado pelos senadores no Impos­to de Renda (IR). Na terça-feira pas­sada os caloteiros sacramentaram a mamata. Confirmaram a escandalo­sa notícia de setembro.

É inacreditável, para dizer o míni­mo, a insensibilidade com que os 84 senadores jogam um balde de água fria no entusiasmo e no sentimento de alívio com que o cidadão brasilei­ro comemora uma decisão histórica do Poder Judiciário que parece sinali­zar o fim da ancestral impunidade dos poderosos. Impecável e impassi­velmente envergando seus colari­nhos brancos, os 84 senadores, alguns por habitual esperteza, outros por covarde omissão, não precisaram mais do que um minuto, 60 segun­dos, para se calarem, olharem para o outro lado, fingirem que nada estava acontecendo e permitirem a ratifica­! ção do abominável Ato n.° 14 da Co­missão Diretora da Casa. Dispõe a medida, em seu artigo 1.°: "O Senado ; Federal, na condição de responsável tributário, procederá ao pagamento : do Imposto de Renda incidente sobre os valores percebidos pelos senadores a título de ajuda de custo, referentes aos exercícios financeiros anterio­res à edição do presente Ato, respeita­da a prescrição qüinqüenal".

Chama a atenção a maneira, diga­mos, sutil, como o texto do Projeto de Resolução ora aprovado expõe a matéria. Não há nenhuma referência explícita, direta, ao fato de que o Se­nado vai pagar o IR que deveria ter saído do bolso dos senadores. A refe­rência é indireta, ao Ato n.° 14, de se­tembro último, que decidiu pelo paga­mento e que "regula o entendimento sobre a natureza jurídica da parcela prevista no art. 3.° do Decreto Legisla­tivo n.° 7, de 1995". Foi esse decreto que criou os salários extras extintos em setembro.

Para lançar o prejuízo na conta da viúva, a Mesa do Senado recorre a uma série de argumentos, inclusive uma decisão da Segunda Turma do STJ, prolatada em fevereiro do ano passado, que dá apoio à tese de que os chamados 14.° e 15.° salários que até recentemente eram pagos aos par­lamentares (sobre os quais não foi re­colhido IR) têm caráter indenizatório e por este motivo sobre eles não inci­de Imposto de Renda. A matéria tal­vez seja discutível do ponto de vista legal Mas isso não elide a responsabi­lidade eminentemente política do Se­nado Federal, a quem a Constituição atribui funções legiferantes e fiscalizadoras. E ter responsabilidade políti­ca significa, entre outras coisas, dar o bom exemplo.

Não é, portanto, sensato, nem jus­to, e muito menos democrático - pa­ra não falar em decente -, que aque­les sobre cujos ombros recai a respon­sabilidade de legislar o façam em be­nefício próprio, especialmente quan­do se trata do. pagamento de impos­tos. E justo num país cuja máquina arrecadadora é implacável com os cidadãos comuns e tem uma das mais pesadas cargas tributárias do planeta. A manifestação dessa ignominiosa es­perteza - a de legislar em causa pró­pria para transferir para o contribuin­te o ônus da sonegação fiscal -, esse cínico dar de ombros à probidade por parte de quem deveria zelar por ela, isso é tudo o que a cidadania precisa para se desencantar de vez com as ins­tituições republicanas.