Título: Na base do racismo, temor à semelhança?
Autor: Novaes, Washington
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/12/2012, Espaço aberto, p. A2

Páginas de jornais e revistas andam re­pletas de notícias, interpretações e opiniões a respeito da legislação que re­serva cotas em universidades e institutos técnicos de nível mé­dio federais para candidatos que se declararem pretos, pardos ou indígenas, assim como a alunos que tenham feito integralmente o ensino médio em escolas públi­cas a candidatos oriundos de famüiascomrendafamiliarmen-sal per capita de até um salário mínimo e meio. Não faltam con­trovérsias. Mas não é só por aí que vai a discussão. Ela inclui, também, a discriminação contra a mulher no mercado de traba­lho ena renda. Segundo informações deste jornal (28/10), o primeiro Exa­me Nacional do Ensino Médio (Enem) pós-lei de cotas mos­trou que 54% dos inscritos eram negros ou indígenas, enquanto a participação dessas etnias na população nacional é de 51%. E, dos 5,7 milhões de estudantes que se inscreveram para vestibu­lares, 1,5 milhão havia termina­do em 2012 o ensino médio, 80% dos quais (1,2 milhão) em escolas públicas. Mesmo sem a legislação nova, o número de pretos e pardos na universidade multiplicou-se por quatro entre 1997 e 2011, segun­do o Censo da Educação Supe­rior, enquanto o de brancos pou­co mais que duplicou (Estado, 17/10). E a porcentagem de pre­tos, pardos e indígenas na popu­lação total do Estado de São Pau­lo é de 34,73%. Adversários das cotas na edu­cação também têm seus argu­mentos, entre eles o de que a no­va legislação não promove a in­clusão educacional e social dos favorecidos, apenas oculta a fal­ta de qualidade da educação no País. E que entrar pelo caminho das cotas seria arriscado, intro­duziria por lei uma divisão peri­gosa na sociedade. Também aí não faltam números para corro­borar posições. Por exemplo: se­gundo o Sistema de Avaliação da Educação Básica, só 12% dos alu­nos do 9.0 período de ensino têm aprendizado adequado em Mate­mática; 88% não entendem fra­ções, não sabem operar com por­centagens nem fazer cálculos com dinheiro; e só 22% têm um bom aprendizado da língua por­tuguesa. Não é só: ainda temos 10,9 milhões de analfabetos, 77 milhões de pessoas não têm o há­bito de ler e o piso salarial médio dos professores com 40 horas se­manais de trabalho é de apenas R$ 1.451,00. Há estatísticas em profusão. O número de assassinatos de ne­gros no País foi 132% maior que o de brancos, entre 2002 e 2010, enquanto caiu o número de mor­tes violentas de brancos (Esta­do, 30/11). Mas a renda da popu­lação negra cresceu em ritmo cin­co vezes maior que a não negra em dez anos. Oito em dez pes­soas que chegam à classe média são negras (FP, 18/11). A partici­pação das mulheres na força de trabalho aumentou de 40% para 44,5%, entre 1992 e 2009, segun­do o IBGE. Mas elas trabalham mais que os homens, porque adicionam 22 horas semanais de tra­balho doméstico às 36 horas fora de casa, enquanto os homens so­mam apenas 9,5 horas a suas 43 horas semanais fora de casa. Só que a remuneração média das mulheres é cerca de 1/3 menor que a dos homens: R$ 1.020,31, ante R# 1.505,08. Tudo isso num quadro em que o Brasil é um dos países de maior desigualdade no mundo (Estado, 29/11), com 20% da população de maior ren­da detendo 57% da riqueza total do País (eram 63,7% em 2001), enquanto os 40% mais pobres fi­cam com 11% do total. Todas essas coisas trazem de volta à memória do autor destas linhas uma discussão de que par­ticipou há 20 anos, em Salvador, na Sociedade de Cultura Negra no Brasil, promovida pela cientis­ta social Juana Elbein dos San­tos. Ali, o historiador Joel Rufino dos Santos começou por pergun­tar: Os direitos humanos são um valor universal? Todos os povos os percebem, compartilham e aceitam damesma forma? Outu-dodepende da cultura, da geogra­fia, do segmento social do obser­vador? Mesmo entre nós não é assim? "Grande parte do povão" - afirmou ele - não admite que se invoquem esses direitos para proteger supostos ou reais infra­tores, principalmente assaltan­tes, sequestradores, etc. Parece favorável até a que se torturem esses acusados, mesmo antes de qualquer definição judicial nos casos em que estejam expostos. "Para a parcela mais pobre da po­pulação" - disse ele "os únicos laços com o Estado estão no co­brador de impostos e na polícia" (revista Visão, 8/4/1992). Opi­nião semelhante à do escritor Márcio de Souza, que mais de um a década depois, em outra dis­cussão, em Manaus, disse que "cultura popular só entra no noti­ciário quando chega a polícia". Quem pesquisar mais verá que o quadro também é dramáti­co quando se trata de etnias indí­genas. Só em 1988, depois de sé­culos de violências, aconteceu a primeira condenação judicial no Brasil de um branco por as­sassinato de um índio. E, como sempre, disputando as terras do outro. Nada novo, se se lem­brarem os assassinatos e suicí­dios de mais de 500 índios gua­rani kaiowá nos últimos tem­pos, como tem sido relatado pe­la comunicação. Vale a pena, por tudo isso, re­tornar ao debate de Salvador, pa-radestacar o pensamento expos­to na ocasião pelo professor Ka-bengele Mutanga, professor da Universidade de São Paulo (USP) mas natural do Zaire (ho­je República do Gongo, país-se­de de uma guerra civil em que já morreram milhões de pessoas, de etnias que disputam entre elas suas terras tradicionais, de onde foram expulsas por empre­sas colonizadoras). Exilado em São Paulo, o pro­fessor Kabengele Mutanga foi contundente: "Temos de parar de falar só nos direitos dos ne­gros, dos índios e outras mino­rias à base de diferenças, apenas. Abase do racismo não está exata­mente na negação da diferença. Está no temor da semelhança. É pelo fato de saber que eu posso fazer as mesmas coisas que ele, posso ocupar o lugar dele, que o branco racista me discrimina, persegue e mata". As divergências são respeitá­veis. Mas quem olha o panora­ma brasileiro, com as diferenças econômicas, a situação do mer­cado de trabalho e a possibilida­de de acesso a oportunidades educacionais, certamente pres­ta atenção às palavras do profes­sor Mutanga.