Título: A Constituição do Egito
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/12/2012, Notas e informações, p. A3

O referendo que aprovou a nova Constituição do Egito mos­tra que ela está longe de ser o esperado instrumento de união nacional em torno da de­mocratização do país. O texto foi aprovado com 64% dos vo­tos, mas apenas 32,9% dos 52 milhões de, eleitores registra­dos votaram. Tais números tra­duzem o desencanto da maio­ria dos egípcios com os rumos que a "Primavera Árabe" está tomando no país. Sob essa at­mosfera, é improvável que o Egito alcance algum consenso político para aprovar as refor­mas necessárias para voltar a ter crédito internacional e fi­nanciar sua recuperação econô­mica. Gomo resultado, o país árabe de maior peso estratégi­co na região corre o risco nada desprezível de enfrentar uma profunda crise, com conse­qüências imprevisíveis.

A tarefa de conduzir o Egito a uma distensão e a um com­promisso, entre as forças políti­cas deveria estar na agenda do presidente Mohamed Morsi. No entanto, Morsi foi um dos principais responsáveis pela atual crise, comportando-se em alguns momentos como Hosni Mubarak, o ditador que a rebelião da Praça Tahrir aju­dou a derrubar. A título de pro­teger a assembleia constituin­te, ameaçada de dissolução por instituições ainda dominadas por simpatizantes do antigo re­gime, o presidente atribuiu a si mesmo poderes extraordiná­rios, emulando velhas práticas autoritárias. Foi o bastante pa­ra que a oposição, ainda que fragmentada, conseguisse mo­bilizar multidões na Praça Tah­rir, o que obrigou Morsi a re­cuar. Mesmo assim, em meio aos violentos choques que se seguiram, ele responsabilizou "agentes externos" pela crise, recurso retórico ao qual Muba­rak frequentemente recorria para disfarçar sua brutalidade e seus erros.

A assembleia foi em frente e, dominada pela Irmandade Mu­çulmana, aprovou um texto constitucional com forte cará­ter religioso. Além disso, a Car­ta atribui à Câmara Alta do Par­lamento a tarefa de legislar até que uma nova Câmara Baixa se­ja eleita. Como a Câmara Alta é controlada pelos partidos islâ­micos, há o risco de que sejam aprovadas leis que aprofundem a islamização do Egito. Desse modo, as minorias cristã, libe­ral e secular se sentem alijadas do processo de transição e es­tão cada vez mais dispostas a ir às ruas para reivindicar mudan­ças na Constituição.

A Morsi, como presidente de todos os egípcios, caberia ao menos considerar a possibilida­de de apoiar emendas constitu­cionais exigidas por essas mino­rias, mas isso parece distante. Pouco antes de sancionar a Constituição, em discurso na TV, ele admitiu "erros" no pro­cesso de elaboração do texto e disse que a mera existência de opiniões divergentes era um "fenômeno saudável" no "Egi­to revolucionário". Declarou ainda que aqueles que não apro­varam a Constituição deveriam ser respeitados: "Não quere­mos voltar ao tempo do pensa­mento único e das maiorias for­jadas". Não se pode negar que o tom usado por Morsi é um avanço real - antes dele, como nos tempos sombrios de Muba­rak, o mais comum era o encar­ceramento arbitrário dos oposi­tores. Também o fato de Morsi ter admitido sua responsabili­dade pelas falhas "aqui e ali" na Constituição pode ser interpre­tado como uma importante abertura. Ao fim e ao cabo, po­rém, são apenas migalhas, que Morsi aceitou dar aos descon­tentes somente depois de ter si­do pressionado pelos Estados Unidos, de quem o Egito de­pende. O presidente não sinali­zou nenhuma medida ou con­cessão concreta, limitando-se a convidar a oposição a um "diá­logo nacional". Os oposicionis­tas rejeitaram de pronto o con­vite, porque, para eles, Morsi está mais interessado em um "diálogo consigo mesmo".

Assim, enquanto Morsi tudo faz para manter intocada a in­fluência islâmica sobre a nova ordem do Egito, a oposição, massacrada nas urnas, aposta no caos. Quer mobilizar o país, aproveitando-se do aniversário da revolução, em 25 de janeiro, para adicionar pressão sobre Morsi e expor a Constituição como moral e politicamente ile­gítima. Não lhes parece faltar razão. Mas a opção pelo con­fronto, em vez de alguma for­ma de entendimento, é receita certa para o colapso.