Título: Governos cobiçam contratos da ONU
Autor: Chade, Jamil
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/01/2013, Internacional, p. A15

Nos bastidores das operações depaze das missões humanitá­rias da ONU, Estados dispu­tam contratos milionários pa­ra fornecer serviços e bens pa­ra essas iniciativas. Nos últi­mos anos, a organização trans­formou-se numa verdadeira mina de contratos, ao ponto de governos passarem a se or­ganizar para permitir que suas empresas tenham maio­res chances de vencer licita­ções abertas pelas Nações Uni­das em diversos países.

Documentos obtidos pelo Es­tado revelaram que, entre 2007 e 2011, a ONU promoveu licita­ções e adquiriu bens no valor de US$ 56 bilhões em todo o mun­do, um montante recorde usado para comprar desde pneus e ga­solina para seus carros até ali­mentos e barracas para refugia­dos. Nos últimos seis anos, a ONU pagou a empresas e entida­des brasileiras quase US$ 1 bi­lhão em troca de serviços e bens.

Diante de contratos milioná­rios, governos de todo o mundo vêm mantendo uma disputa acir­rada pelos maiores acordos e não hesitam em usar sua influên­cia política e poder de barganha para garantir que parte dessa fortuna venha para suas próprias empresas.

Um exemplo é o governo da Grã-Bretanha que, explicitamen­te, colocou a ONU como alvo de suas estratégias paraganhar con­tratos no exterior. Em nota às empresas, Londres aponta que as organizações internacionais seriam "um mercado potencial­mente gigante para as empresas britânicas" e se coloca à disposi­ção dos interessados em fazer lobby por eles. Hoje, empresas britânicas têm entre 4% e 17% dos contratos internacionais, de­pendendo da organização.

Os lucros decorrentes de uma guerra ou de uma epidemia tam­bém passaram a ser alvo de uma troca diplomática. Diplomatas em Genebra revelaram ao Esta­do que passou a ser uma práti­ca comum governos exigirem que parte do dinheiro dado à ONU para o financiamento de um projeto acabe destinado a empresas e ONGs de seus pró­prios países. Esse foi o caso de uma ação na área de saúde no Haiti financiada pela França. A condição imposta por Paris: a ONG que seria contratada para executar a operação da ONU te­ria de ser francesa. Na prática, parte do dinheiro voltaria para a própria França.

Por décadas, o Programa Mundial da ONU para Alimentos somente recebia doações america­nas em produtos, numa forma encontrada pelo governo dos EUA de escoar e financiar parte da produção agrícola do país. A direção do programa foi sempre ocupada por um americano.

"Nenhum governo faz doa­ções por acaso", disse um expe­riente diplomata em Genebra. "A solidariedade na diplomacia é medida por quanto o país doa­dor vai ganhar com isso."

Os países emergentes entra­ram na disputa por esses contra­tos há quase uma década, diante da constatação de que pratica­mente todos os grandes contra­tos da ONU eram fechados com empresas de países ricos. Parte da ofensivapara reverter isso começou em 2005, quando uma re­solução liderada pela China na Assembleia-Geral estabeleceu que a entidade deveria criar me­canismos para permitir que em­presas de países emergentes ti­vessem uma participação ade­quada nos contratos. A estraté­gia funcionou: em 2011, dos US$ 14,3 bilhões gastos pela ONU pa­ra comprar de remédios, alimen­tos, computadores, carros e até cadeiras e lápis para seus escritó­rios, US$ 8,5bilhões foram desti­nados a contratos com empre­sas de países emergentes.

Em termos individuais, os americanos ainda controlam 10% de todos os contratos da ONU, com vendas de US$ 1,5 bi­lhão em 2011. A segunda posição é dos suíços, com contratos no valor de US$ 735 milhões. As duas principais sedes das Na­ções Unidas ficam justamente nos Estados Unidos e na Suíça.

Em 2011, o Brasil foi o 19.° no ranking dos países que mais obti­veram contratos com a ONU. No total, esses acordos rende­ram a empresas e ONGs nacionais US$ 188,9 milhões, valor aci­ma da própria contribuição de US$157 milhões do governo bra­sileiro ao orçamento regular da ONU. Entre os produtos e servi­ços fornecidos com maior regula­ridade pelo Brasil estão alimen­tos, vacinas, equipamentos para escritório e máquinas agrícolas.

Empresas como Gerdau, Cla­ro e a GCE estão entre as beneficiadas. Os dados da ONU reve­lam que o Brasil também ficou com alguns dos maiores contra­tos no Haiti, justamente onde o País comanda as forças de paz da ONU.