Título: Mudança de postura
Autor: Limongi, Mário de Magalhães P.
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/01/2013, Espaço aberto, p. A2

Em artigo anterior (Decisão do STF te­rá efeitos benéficos contra a impunida­de), publicado na edição de 13 de no­vembro de 2012 de O Estado de S. Paulo (caderno especial Mensalão, um julgamento históri­co, página H8), sustentei que o julgamento do mensalão in­fluenciaria a primeira instância e permitiria maior facilidade pa­ra condenações criminais, até então, pouco prováveis. Isso por­que o Supremo Tribunal Fede­ral (STF) surpreendeu a todos ao não desprezar a prova produ­zida na fase inquisitorial, ao con­ferir importância à prova indiciária, ao adotar a teoria do domí­nio do fato e ao reconhecer a tipi­ficação do crime de quadrilha ou bando na conduta dos réus. Sur­preendeu ainda mais na dosa­gem das penas, ao aplicá-las aci­ma do mínimo legal, levando em conta a gravidade dos delitos e suas consequências.

O julgamento do mensalão, mais rápido do que se esperava, mudou também comportamen­tos. Em primeiro lugar, o nosso sistema penitenciário passou a ser discutido e, mais que isso, te­mido por quem jamais imagina­va que pudesse vir a cumprir pe­na privativa de liberdade.

Os jornais noticiam que impli­cados na Operação Porto Segu­ro, com justo receio de condena­ções, para diminuir futuras pe­nas, querem fazer uso da dela­ção premiada. Com muita pro­priedade, a jornalista Dora Kramer, na edição de 16 de novem­bro do Estado (Soro da verdade, página A6), anotou que, se para Marcos Valério Fernandes de Souza, após as condenações im­postas, a delação se apresentou tardia, "para Rose (Rosemary Nóvoa de Noronha, ex-chefe do gabi­nete da Presidência da República em São Paulo) e outros implicados, a hora é essa".

Certamente, não fosse a pos­tura firme do Supremo, a ideia de impunidade continuaria a prevalecer e os implicados na Operação Porto Seguro simples­mente apostariam na dificuldade para a obtenção de provas e na lentidão do Judiciário. A mu­dança de atitude dos indiciados por corrupção já é um alento pa­ra todos os que não compac­tuam com a improbidade.

É interessante observar que, para que se pudesse atingir mais efetividade no combate ao cri­me organizado, foi necessária, primeiro, mudança de postura também do legislador.

Embora até hoje ainda se dis­cuta exatamente o conceito de crime organizado, há um consen­so em admitir que nele há estru­tura hierárquica, divisão de tare­fas e infiltração no aparelho esta­tal. Trata-se, pois, de conduta so­fisticada, sendo necessário dar ao aparelho repressivo do Esta­do melhores meios para a apura­ção dos delitos.

Por causa dessa necessidade, a legislação brasileira pouco a pouco foi mudando, passando a permitir a quebra de sigilo bancá­rio e telefônico e, seguindo exemplo muito utilizado nos Es­tados Unidos e na Itália para o combate à Máfia, instituiu a dela­ção premiada (nesses dois paí­ses, a delação premiada tem mui­to mais alcance em razão de as penas serem muito mais duras e, portanto, mais temidas do que as aplicadas no Brasil).

De fato, para o combate à cri­minalidade organizada e sofisti­cada, sem a possibilidade de que­bras de sigilo e a colaboração de membros da organização fica quase impossível entender a di­nâmica dos fatos e a participa­ção de cada um dos membros da quadrilha.

Não poucas pessoas discu­tem a questão ética. Argumen­tam que é intolerável a invasão de privacidade que represen­tam a interceptação telefônica (ou de e-mails, como no caso da Operação Porto Seguro) e a que­bra do sigilo bancário. De outro lado, não aceitam que a Justiça dê credibilidade a depoimentos de criminosos (curiosamente, no caso de Marcos Valério, os mesmos que negavam a existên­cia do mensalão agora dizem que não se pode dar credibilida­de à palavra de quem ostenta condenação criminal).

É evidente que os mecanis­mos citados devem ser usados com cautela. Mas também aí te­mos uma mudança de postura.

Certamente, para o combate à criminalidade comum não se jus­tifica a invasão de privacidade e não se pode transacionar com o criminoso. No entanto, para não se render ao poder paralelo que representa o crime organizado, é preciso conferir ao Estado ou­tros meios para a investigação.

Entre o interesse público de combate à criminalidade organi­zada, que tanto prejuízo causa ao erário, e o interesse particu­lar do investigado, o primeiro de­ve prevalecer.

Em verdade, a própria lei se encarrega de evitar abusos. A in­terceptação telefônica e a que­bra de sigilo bancário só podem ser determinadas por decisão ju­dicial, devidamente fundamen­tada, o que afasta, ou ao menos dificulta, a possibilidade de arbi­trariedade. E o valor do depoi­mento do delator também será apreciado pelo juiz, que o con­frontará com as demais provas. Aliás, como é sabido por todos os operadores do Direito, nenhu­ma prova, nem mesmo a confis­são, tem valor absoluto. Assim, ninguém será condenado tão so­mente pela delação de um coautor do delito, mas sim em razão do conjunto da prova.

Ao contrário do que alguns es­tão sustentando, o nosso siste­ma processual não fere, em mo­mento algum, o princípio da am­pla defesa. Da mesma forma, não é certo dizer que as nossas penas são excessivamente du­ras (na Alemanha, país sabida­mente garantista, por exemplo, um jogador de futebol, primário e de bons antecedentes, está cumprindo pena privativa de li­berdade por ter ateado fogo à própria casa, o que dificilmente aconteceria aqui).

Há países onde a legislação é mais ousada, com um sofistica­do esquema de proteção de tes­temunhas ou do colaborador e com a possibilidade de agente policial infiltrado nas quadri­lhas para a indução à prática de crimes.

O nosso sistema processual, pouco a pouco, vai se adaptando a uma nova realidade, dando ao aparelho repressivo do Estado melhores condições para um efetivo combate às organiza­ções criminosas.

Enfim, com a paulatina mu­dança da postura do legislador, mudou a postura do Judiciário e os criminosos já temem a puni­ção. Boas mudanças!