Título: O mandato acaba quando termina
Autor: Nêumanne, José
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/01/2013, Espaço aberto, p. A2

Não falta boa von­tade aos amigos e prosélitos de Hu­go Chávez fora da Venezuela pa­ra justificarem as estripulias feitas pelo coman­dante para decretar como de­mocrático o regime "bolivariano" que impôs ao país, dividido entre seus adoradores e os que o demonizam. As reformas que ele instituiuna Constituição pa­ra se perpetuar no poder são avalizadas como mainifestações de apreço do líder a seu povo, que ele tirou da miséria. A imposição de um Judiciário fiel a seus caprichos é descrita como ama necessidade para barrar as pretensões de uma burguesia cúpidaque deve ser afastada do poder republicano para o bem do povão aquinhoado com as graças produzidas pela renda auferida com o petróleo farto.

No Brasil, a condescendência da esquerda com o golpista ma­logrado que se tomou um emé­rito ganhador de eleições, feito em que pode ser equiparado aos de Adolf Hitler na Repúbli­ca de Weimar e Benito Mussolini na Itália, alcança os píncaros da incoerência e da amnésia. Até hoje, Fernando Henrique é execrado pelos esquerdistas pa­trícios por ter patrocinado a emendaque incorporou a reelei­ção à norma constitucional. Em­bora nãp haja uma só evidência de que tenha ocorrido fraude na votação da emenda à Constitui­ção e, mais, embora Lula tenha usufruído seu efeito e Dilma se prepare para fazer o mesmo, sempre que alguém lembrar o mensalão como evidência de delinquência no PT no exercício do poder republicano aparece­rá uma voz lembrando a "com­pra dos votos para a reeleição". Mas, comparada com a frequência com que Chávez emendou a Constituição venezuelana para mais uma renovação de manda­to, a reeleição brasileira é pinto. E, ainda assim, não há registro de uma crítica, um comentário desairoso, uma piada que seja, sobre a resistência do presiden­te venezuelano a deixar o posto.

E sempre que o Judiciário do país vizinho se curva de manei­ra evidente aos interesses do grupo no poder, isso é noticia­do como se esse Supremo de fantoches a serviço do governo fosse tão autônomo como o de uma democracia que se preze.

Nada, porém, até agora se equivaleu à justificativa despro­positada que tem sido atribuída ao autogolpe dos chavistas (do qual dificilmente Chávez teria participado, de vez que ainda não deu o ar de sua graça por imagem nem por voz) para per­manecerem no poder, mesmo não tendo seu chefe tomado posse, como é praxe nas demo­cracias. Ora, dirá (e disse) o Ju­diciário da Venezuela, "posse é mera formalidade". Nunca nin­guém terá ousado tanto, nem mesmo o paraguaio Alfredo Stroessner, que se orgulhava dos 90% dos sufrágios obtidos em eleições cujos resultados eram dados como indiscutíveis por tribunais escolhidos em prá­ticas similares à ocorrida no sui generis regime "bolivariano"

O artigo 233 da Constituição da lavra de Chávez estabelece que a ausência absoluta do pre­sidente é caracterizada por morte, renúncia, destituição decretada pela Suprema Corte, inca­pacidade física ou mental per­manente certificada por equipe médica designada pela Supre­ma Corte e aprovada pela Assembleia Nacional, abandono do cargo (declarado como tal pela Assembleia) e revogação popular do mandato. Em caso de ausência absoluta do presi­dente eleito antes da posse, de­ve ser realizada nova eleição nos 30 dias consecutivos seguin­tes. No período da eleição até a posse do novo presidente elei­to, o presidente da Assembleia Nacional assume interinamen­te o poder. E o artigo 234 deter­mina que, no caso de ausência temporária do presidente, o vice-presidente exerce o poder por um período de 90 dias, que pode ser prorrogado por mais três meses por decisão da As­sembleia Nacional. Se a ausên­cia temporária superar seis me­ses, a Assembleia definirá por maioria se ela deve ser caracteri­zada como ausência absoluta.

Chávez está em Havana, on­de foi operado. O mundo intei­ro sabe que ele está à morte, mas apenas seus médicos cuba­nos e asseclas venezuelanos po­dem garantir se está vivo.

O comandante está no poder há 14 anos e ganhou um manda­to que terminaria em 2019, quando completaria 20 anos de mando. Esse mero registro dá conta do desprezo que o prócer bolivariano tem por um dos cânones do Estado Democrático de Direito: o rodízio no poder. Ninguém está querendo dizer que o comandante não seja ama­do pelo povo nem que, mesmo morto em Cuba, não seria reelei­to se novas eleições fossem convocadas hoje. Mas a matemáti­ca mostra que seu mandato de 14 anos representa quase o do­bro dos 8 a que Fernando Henri­que e Lula tiveram direito e que Dilma pode almejar, se nossa Constituição não for alterada.

É acintosa a interpretação anunciada por Luísa Estella Morales, presidente do Tribunal Supremo de Justiça (STJ), ao aceitar o pleito do governo que a nomeou de que não há a exi­gência constitucional da posse. Mas nem o Judiciário aparelha­do pelo chavismo rasgar a Cons­tituição que Chávez impôs se compara à cusparada dada por brasileiros que fingem ser de­mocratas áo equipararem a fal­ta de Chávez na posse em Cara­cas à posse sem Tancredo em Brasília. Em 1985, o Brasil enter­rou a ditadura e inaugurou um governo civil de transição para convocar a Constituinte e a eleição direta para a Presidência. À morte no hospital, Tancredo Neves, eleito pelo Colégio Elei­toral, não pôde assumir. Tomou posse o sucessor legal, vice-presidente também eleito, José Samey. Chávez encerrou seu terceiro mandato e ganhou o quarto consecutivo. Na Vene­zuela, o vice é nomeado pelo presidente, como se fosse um ministro. O presidente não as­sumiu e Nicolás Maduro não es­tá na linha de sucessão, mas o Judiciário avalizou o autogolpe prorrogando o mandato de Chá­vez, extinto em 10 de janeiro.

Nas democracias de verdade, a duração do mandato importa mais do que quem o ocupe. E, como diria Abelardo Barbosa, o Chacrinha, "o mandato acaba quando termina". O anterior de Chávez acabou e o seguinte se iniciaria há cinco dias. Sem pos­se, não começou. Logo, deu-se o autogolpe. O resto é lorota.

JORNALISTA, POETA E ESCRITOR