Título: Imagem e semelhança
Autor: Kramer, Dora
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/01/2013, Nacional, p. A6

Não surpreende a sem cerimônia com que o Congresso se prepara para eleger presidentes de suas duas Casas um deputado e um senador cujas trajetórias colidem com o decoro formalmente exigido para o exercício da atividade parlamentar.

A razão da naturalidade é a pior possível: o Parlamento não se dá ao respeito e isso não causa espanto nem move forças suficientes para mudar o curso da triste história.

A menos que o inesperado faça uma surpresa, daqui a duas semanas Henrique Eduardo Alves e Renan Calheiros serão os escolhidos para presi­dir a Câmara e o Senado, respectiva­mente, pelos próximos dois anos.

Ungido por força de um acordo de rodízio entre PT e PMDB firmado ainda no governo Lula, na reta final Alves está envolto em atmosfera de irregularida­des relativas à destinação de emendas e verbas de representação parlamentar.

Antes, em 2006, havia sido obrigado a renunciar à candidatura de vice-presidente da chapa de José Serra em decor­rência de informações dadas pela ex-mulher, Mônica Azambuja, em proces­so de divórcio litigioso, sobre depósi­tos de R$ 15 milhões em contas sem a devida declaração, em paraísos fiscais mundo afora.

No quesito folha corrida, Calheiros quase chega a dispensar apresentação. É alvo de investigações por crime am­biental, é suspeito de comandar emisso­ras de rádio por meio de testas de ferro, em 2007 foi processado por falta de decoro parlamentar porque uma emprei­teira pagou a pensão da filha que teve com a jornalista Mônica Veloso, na ocasião apresentou documentos fraudulentos ao Senado para comprovar rendi­mentos e finalmente renunciou à presi­dência da Casa em troca da manuten­ção do mandato.

A maioria dos senadores aceitou o escambo e o inocentou na votação se­creta em plenário. A maioria, agora, ao que tudo indica, não vê nada demais em reconduzi-lo ao posto para cujo exercício era tido como moralmente impedido há seis anos.

Tanto tem consciência do disparate, que Calheiros é candidato na condição de sujeito oculto: ainda não se lançou oficialmente para reduzir o tempo de exposição a eventuais protestos.

Ao que se vê, no entanto, medida cautelar desnecessária, pois a despeito de resistências aqui e ali e de tentativas de apresentar candidaturas alternativas, não há disposição, interesse, força nem capacidade para reações.

E que não se culpe Henrique Alves ou Renan Calheiros por almejarem po­sições para as quais se exigiria o cum­primento estrito do manual da boa conduta. Ambos jogam para o futuro de suas carreiras nos Estados de ori­gem, Rio Grande do Norte e Alagoas, territórios dominados e desprovidos de massa crítica.

O problema aí não é de quem pleiteia, mas de quem aceita de boa vontade e compactua com o pleito: governo e Con­gresso.

Ao Planalto pode até desconfortar o excesso de poder nas mãos do PMDB, partido de Alves e Calheiros. Mas, convenhamos, não desagrada que os dois eleitos sejam líderes feri­dos, sem a plenitude da credibilidade.

Já o Congresso não vota o Orça­mento, defende mandatos de conde­nados, não examina vetos presiden­ciais, faz troça do instituto da CPI, deixa o governo pintar e bordar com medidas provisórias, debita na conta do contribuinte imposto de renda de­vido por suas excelências, só se mobi­liza em defesa dos próprios privilé­gios, submete-se ao Executivo em troca de qualquer cafuné.

Sendo assim, nada de novo no front: Alves e Calheiros são coman­dantes à altura de um Parlamento em situação falimentar.

Fantasia chavista. Barack Obama tomou posse ontem de seu segundo mandato. Que diria o mundo se, doen­te, internado em outro país, o presidente dos Estados Unidos fosse consi­derado empossado em regime de con­tinuidade com o aval da Suprema Cor­te sob a justificativa de que a norma constitucional é mera formalidade?