Título: Trapaça no esporte
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Fonte: O Estado de São Paulo, 26/01/2013, Notas e informações, p. A3

Lance Armstrong considerava-se invencível. Sete vezes campeão da Volta da França, a mais importante corrida de bicicletas do mundo, entre 1999 e 2005, o americano talvez fosse o mais próximo que um atleta já chegou da imagem de um "super-homem". Sobrevivente de um câncer nos testículos aos 25 anos, Lance tornou-se símbolo de superação e capacidade de vencer. Dedicado igualmente à caridade e à mobilização de recursos para ajudar doentes de câncer, tornou-se o herói de uma geração de aficionados do ciclismo. Em outubro do ano passado, porém, uma exaustiva investigação da Agência Americana Antidoping (Usada) concluiu que Lance só era super-homem porque fazia uso extensivo e sistemático de doping, no "mais sofisticado, profissionalizado e bem-sucedido esquema de dopagem da história do esporte". Até então, todas as suspeitas em relação ao ciclista eram tratadas por seus fãs e por ele como fruto de "inveja". No dia 18 de janeiro passado, porém, o ex-atleta foi ao programa de TV da apresentadora Oprah Winfrey para confirmar que, sim, ele enganara o mundo.

O escândalo de Lance é um caso extremo, que beira a pato­logia, mas serve para reafirmar as suspeitas de que o esporte de alta performance está aber­to ao uso de substâncias que melhoram o desempenho atléti­co e o sistema existente para flagrar essa prática fraudulenta é miseravelmente falho.

Depois de ter vencido o cân­cer, Lance não fez segredo de seus objetivos no esporte: "De­cidi fazer qualquer coisa para ganhar". Esperava-se, claro, que fosse apenas um exagero re­tórico, e não o anúncio de que nenhuma barreira ética seria tão alta que não pudesse ser ul­trapassada. Mas foi o que aconteceu. Durante 13 anos, o ciclis­ta fez uso generalizado de testosterona e de EPO (Eritropoietina), hormônio sintético que aumenta a produção de glóbulos vermelhos e, assim, eleva os níveis de oxigênio no sangue. Além disso, ele se submetia a transfusões de sangue para não ser flagrado.

Lance não era o único. O es­quema envolvia outros atletas de sua equipe e foi desenhado para fazê-los usar substâncias que não eram detectáveis. O ci­clista dizia ter passado por mais de 500 testes antidoping e que nunca foi flagrado, mas omitiu um detalhe crucial: na­quela época, os exames simples­mente não detectavam as subs­tâncias que ele usava. Isso leva a outra questão fundamental: a indústria que produz drogas pa­ra melhorar a performance esportiva avança muito mais rapi­damente que as leis e os exa­mes. O doping do futuro próxi­mo pode incluir alterações ge­néticas e regeneração de teci­dos por meio de células-tronco. A composição das drogas proibidas será de tal modo so­fisticada que imitará as substân­cias naturais do organismo.

Por isso, para tentar desesti­mular o uso de doping, o escân­dalo de Lance Armstrong está sendo tomado como exemplar. A União Ciclística Internacio­nal decidiu apagar o nome do americano da lista dos ganhado­res da Volta da França e nin­guém ocupará seu lugar, por­que os organizadores suspei­tam que aqueles que chegaram logo atrás de Lance também estavam dopados.

Agora, banido do esporte e com todos os seus títulos cassa­dos, Lance está em busca de re­denção. Mas seu caso não é sim­plesmente o de um atleta que decide se dopar para correr mais que os outros. É o de um trapaceiro profissional, que criou em torno de si uma aura de heroísmo e glória que o tor­nou praticamente intocável. Lance tenta agora reconstruir sua imagem na esperança de po­der voltar às competições. No que concerne ao esporte em si, porém, o estrago é muito maior. O caso de Lance e o de vários outros atletas antes dele, igualmente flagrados, mostra que a oferta de substâncias pa­ra melhorar o desempenho, em esportes de alta performance, é uma ameaça que está longe de ser pontual.

Ademais, é bom que se diga, Lance Armstrong não teria sido tão bem-sucedido em sua farsa se não tivesse recebido ajuda de muita gente e se não contas­se com a benevolência interes­sada e cúmplice de seus patrocinadores. Lance certamente pa­gará por seus erros, mas ele não os cometeu sozinho.