Título: França retoma reduto islamista no leste do Mali e refugiados narram sofrimento
Autor: Sant'Anna, Lourival
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/01/2013, Internacional, p. A11

Tensão tribal. Fugitivo de Gao, liberada ontem da presença de grupos radicais que chegaram a dominar metade de país africano, diz que insurgentes tuaregues não teriam razões para agir contra o governo, uma vez que têm privilégios no serviço público e no Exército

Tropas francesas entraram on­tem em Gao, no leste do Mali, um dos últimos bastiões dos grupos islâmicos que chega­ram a dominar metade do país. A liberação da cidade é um alí­vio para o comerciante Boubaka, de 47 anos, que chegou à ca­pital, Bamako, há uma semana. Ele fugiu de Gao levando cerca de 50 pessoas, entre 7 irmãos, seus filhos e mulheres, em um caminhão convertido em ôni­bus, com 100 pessoas apinha­das em bancos de madeira com 6 passageiros cada.

Com o conflito, a passagem su­biu de 8 mil para 10 mil francos (de R$ 13,50 para R$ 17). A traves­sia durou quatro dias, numa rota tortuosa que incluiu duas noites no vizinho Níger. No caminho, ele diz que viu meninos de 10,12 anos, recrutados como soldados dos insurgentes.

"Sempre convivi com os tuare­gues, mas até agora não entendi o que eles querem", diz Boubaka, da etnia peul, que representa 17% da população do Mali, enquanto os tuaregues, somados aos mou­ros, de origem berbere, são ou­tros 10%. "Os tuaregues são privi­legiados. Têm empregos públi­cos sem terem diploma. São ofi­ciais superiores no Exército." Como parte de acordos entre o go­verno do Mali e representantes dos tuaregues, eles têm reserva­da uma fatia no serviço público, nas Forças Armadas e no gabine­te de ministros.

"A verdadeira minoria do Mali são os bobous, que representam entre 2% e 3% da população e tra­balham como empregados do­mésticos", diz o comerciante. "Se alguém tivesse de fazer rebe­lião, seriam eles." Embora isso se­ja proibido, no Mali ainda exis­tem escravos-famílias que nas­cem para servir a outras famílias, e fazem trabalhos domésticos em troca de comida e assistência.

Boubaka, que não quis dar o so­brenome nem ser fotografado, por medo de represálias contra seus parentes que continuam em Gao, conta que sua casa e sua loja foram saqueadas. Ele lembra que os separatistas tuaregues do Movimento Nacional de Libertação do Azawad (MNLA) chegaram à cidade com os militantes do Mo­vimento pela Unidade e Jihad na África Ocidental (Mujao), em 29 de março. "Eles ficaram juntos até maio. Em junho, o MNLA partiu." Os dois grupos entraram em confronto porque o MNLA tem uma agenda secular, de indepen­dência do território do norte, en­quanto o Mujao e o Ansar Dine querem a conversão de todo o Mali em uma república islâmica.

O Mujao pôs esse projeto em prática em Gao. "Mulheres que saiam sem véu são chicoteadas em praça pública", testemunha Boubaka. "Os homens pegos fumando também apanham. "Música e festa foram proibidas na cida­de. "Os tuaregues não gostaram disso. Eles são festeiros", diverte-se Boubaka. Os militantes tam­bém obrigaram os moradores a arrancar antenas de TV dos telha­dos das casas, conta ele.

Boubaka observou que entre os militantes havia malineses de várias etnias, árabes de Gao e de Timbuctu (outracidade ocupada no norte), tunisianos, marroqui­nos, egípcios, saarauis (etnia do deserto) e até três franceses convertidos ao Islã. "Se os islâmicos forem embora de Gao, voltare­mos imediatamente para lá", ga­rante Boubaka.