Título: Deixar a Europa seria muito ruim para os britânicos
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Fonte: O Estado de São Paulo, 30/01/2013, Economia, p. B6

O primeiro-ministro do Reino Unido, David Cameron, preten­de fazer um referendo sobre o futuro do país dentro da União Européia. Seu predecessor Tony Blair, em entrevista para o Spiegeí, explica por que será extremamente arriscado e diz que o referendo ignora os bene­fícios que a adesão à UE trouxe para o país.

O primeiro-ministro Cameron gostaria de obter condições me­lhores para o Reino Unido na União Européia e anunciou um referendo sobre a permanência do país na UE para 2017. Que concessões a Europa e a chance­ler alemã, Angela Merkel, deve­riam fazer?

Não chamaria de concessões, em absoluto. A parte do discur­so de David Cameron com a qual concordo inteiramente é quando ele aborda a necessida­de de reformas e mudanças na Europa. Isso é claro e é correto. A Europa enfrenta enormes de­safios competitivos e é uma questão que sucessivos pre- miês britânicos têm levantado, inclusive eu. A chanceler Mer­kel seria uma aliada nessas questões. Mas a parte do discur­so do premiê que considero problemática não é tanto sobre a Europa, mas quanto ao rela­cionamento britânico com a Eu­ropa. Tenho dificuldades com relação a essa ideia de nos com­prometermos agora a realizar um referendo com uma opção de saída. O que colocamos em jogo é se o Reino Unido sai da União Européia. É uma questão bem separada e diferente de sa­ber se a Europa deve passar por uma reforma ou não.

Não é uma posição convenien­te para o Reino Unido permane­cer dentro da UE? Cada vez que David Cameron está insatisfeito com a Europa ele ameaça deixar o clube.

Sim, mas se você acredita co­mo eu que se o Reino Unido dei­xar a Europa isso seria péssimo para o país, então esta é uma ameaça que acarretará seu pró­prio prejuízo. Numa circunstân­cia em que você tem somente um Estado-membro contra vo­cê, há o risco de as pessoas pen­sarem, bem vamos em frente e saímos. A questão vital é se isso tem a ver com a direção dos 27 ou se é um contra 26. Nós, britâ­nicos deveríamos ter um papel importante na configuração dessa nova Europa. O que ocor­re nas discussões sobre a crise do euro é muito importante pa­ra o meu país, como também para o seu país. Devemos parti­cipar plenamente delas e agir assim sem colocar em risco nos­sa participação como membro da União Européia. A probabili­dade é de que David Cameron vai propor determinadas refor­mas, e provavelmente consegui­rá algum consenso, mas nem to­dos concordarão, o que não é uma surpresa, pela minha pró­pria experiência nas negocia­ções europeias. O que resta en­tão? Isso vai deixá-lo somente com a opção de saída? Não é bom para o Reino Unido, inde­pendentemente de ser bom ou não para a Europa, questionar­mos nossa afiliação à UE - e de­pois deixar o assunto em sus­penso por quatro ou cinco anos.

Como deve a Europa reagir?

Acho que a Europa deve reagir se voltando para a questão da reforma. Quando Cameron le­vantar a necessidade de refor­mas, conseguirá muito apoio neste caso. A crise da zona do euro sob muitos aspectos deixou clara a necessidade de uma reforma; na verdade não a criou, esta necessidade já existia de qualquer maneira. Se vo­cê pensar na questão da aposentadoria na Itália ou numa refor­ma do mercado de trabalho na Espanha - são mudanças que de qualquer modo deveriam ser realizadas. Estou certo de que o resto da Europa lidaria com esses problemas, mas não acho que isso nos dará mais poder de negociação para dizer, bom, se vocês não fizerem o que desejamos, nos retiramos. É preciso ser muito cuidadoso quanto a isso, porque a Europa vai se ressentir.

Mas há um debate muito vivo no Reino Unido sobre a União Européia, o que Angela Merkel e outros líderes da UE não ousa­riam lançar em seu próprio país.

Sim e esse debate vai conti­nuar. Mesmo que os líderes po­líticos insistam ou não, o fato é que a sociedade vai continuar a debater. A China tem uma po­pulação três vezes maior do que a União Européia inteira e nós teremos a maior economia no mundo. Se o Reino Unido deseja ter algum peso nos dias atuais, precisamos da Europa.

O argumento lógico a favor da Europa no século 21 está mais forte que nunca. Tem a ver es­sencialmente com poder, e não mais com a paz. Não vamos lu­tar um contra o outro caso não tenhamos mais a Europa, mas seremos mais fracos, menos po­derosos, com menos influência. Tudo tem a ver com o peso coletivo que é adicionado e dá suporte para os nossos interes­ses nacionais. Não se trata de substituir a sua nação pela Eu­ropa.

No passado, a Europa mostrou- se preocupada consigo mesma?

Acho que ela está obrigada a se preocupar neste momento. O problema da Europa é muito simples: por razões várias, co­mo a globalização, a demogra- fia e a tecnologia, todos os paí­ses desenvolvidos terão de mu­dar radicalmente. O modelo social da Europa tem de passar por uma reforma se ela preten­de continuar competitiva. Isso não significa abandonar os valo­res do modelo social, mas reco­nhecer que o mundo em torno de nós mudou e temos de mu­dar junto com ele. O problema hoje é admitir que a Europa vai existir num contexto geopolítico e econômico completamen­te diferente. Não se trata de uma disputa entre direita e es­querda. Não tem a ver com ideologia. Mas de compreender o quão rápido e o quanto o mundo mudou e como temos de mudar para não ficarmos pa­ra trás.

Este é um argumento que faz com que a saída britânica da UE pareça ainda mais estranha

Nós obtemos da Europa o que não conseguimos mais obter por nossa própria conta. Sim­plesmente não somos suficien­temente grandes. Mas também este é o caso da Alemanha. A In­donésia, que com o tempo vai se tornar um país bastante po­deroso, é três vezes maior do que a Alemanha. Este é o mun­do em que vivemos hoje, não importa se índia, Brasil ou Rús­sia. A Europa nos dá a capacida­de, como um país de médio por­te, de assumirmos um papel de grande potência.

De onde surgiu essa repentina pressão para o Reino Unido dei­xar a União Européia?

Não acho que exista um grande desejo da parte da sociedade britânica de deixar a Europa. Mas há uma minoria muito for­te e barulhenta. Basicamente, trata-se de uma forma ultrapas­sada de nacionalismo. É o caso do Independence Party, que se comporta e argumenta de um modo muito antiquado. É simi­lar a outros movimentos radi­cais em toda a Europa e mesmo nos EUA, como o Tea Party. Mas no final ele não pode nem deve determinar a política do país.

0 sr. acha que os pró-europeus britânicos defenderam com paixão sua participação na UE?

Um dos grandes mitos é que os pró-europeus não se manifes­tam no Reino Unido. Nós o fa­zemos!

Mas não parece que provocam muito impacto.

Fiz um discurso, como também Peter Mandelson, e Lord Heseltine, ou Ken Glarke. O proble­ma no Reino Unido, contudo, é uma mídia muito influente e com grande peso, com posi­ções antieuropeias, o que torna as coisas difíceis.

Como então o sr. argumenta? Veja uma coisa, muitas pessoas no meu país acordam de ma­nhã pensando não ser na União Européia. Mas no emprego, em nível de vida, hipotecas, crime, saúde, educação. Assim, se vo­cê faz uma declaração dramáti­ca como fez o premiê britânico, dizendo "eu lhe dou a chance de deixar a União Européia", vo­cê vai atrair muita publicidade* Uma discurso sobre a Europa na verdade não faz manchetes.

Ssu Partido Trabalhista está agora na defensiva?

Bem, isso depende de saber se é sensato deixar a União Euro­péia. Por que gostaríamos de le­vantar uma questão sobre nos­sa participação na União Euro­péia? Por que fazer isso agora? O Partido Trabalhista tem de afirmar inequivocamente que o Reino Unido tem de permane­cer; isso ajudará o partido a criar pontes para a comunidade empresarial, o que é importan­te. O mais sensato é defender mudanças dentro da Europa, criar alianças para alcançarmos isso e permanecer dentro da maior união política e o maior mercado comercial" e de negó­cios do mundo. A propósito, por que desejaríamos entrar no debate, mas dizer que devemos sair? Não acho que teremos mais influência ameaçando dei­xar a UE.

Por que o Reino Unido se afas­tou tanto da UE nos últimos anos?

Se existe um benefício propor­cionado por esse debate que foi iniciado agora, acho que é o fato de que fará as pessoas para­rem para pensar. Todos estão ir­ritados com a Europa. É difícil tratar com suas instituições, existem regras demais que irri­tam as pessoas. A Europa é uma criação imaginativa ex­traordinária que ainda está se formando. Se você conversar com alemães, italianos, espa­nhóis e britânicos sobre a Europa, eles vão se queixar tanto quanto elogiar. É a vida. Não significa que devemos nos reti­rar.

Cameron teve como objetivo aqueles muitos cidadãos da Europa que estão fartos de Bruxelas?

Imagine que as pessoas nas ruas de Atenas. Roma ou Madri se oponham inteiramente a al­gumas das mudanças propostas por Cameron. O problema da Europa é que o conceito da moeda única com um mercado único é muito sensato. Mas te­mo que na sua execução não houve um alinhamento adequa- do do desejo político de se ter uma moeda única com as deci­sões econômicas necessárias para que as coisas funcionas­sem corretamente. E essa falta de alinhamento é o que esta­mos enfrentando agora. E preci­samos lidar com esse problema em circunstâncias ruins, em meio a uma crise. Mas conti­nuo afirmando que precisamos enxergar a longo prazo. No mo­mento, e possivelmente nos próximos anos, a Europa viverá um período de grande incerte­za, As medidas adotadas pelo Banco Central Europeu (BCE) nos deu algum espaço para res­pirar em termos de liquidez, e é por isso que os rendimentos so­bre títulos caíram. Mas isso não resolveu o problema de sol­vência ou de crescimento. As­sim, ainda acho que a Europa tem muitos desafios pela. fren­te. Mas a longo prazo ela vai se levantar por causa dos funda­mentos subjacentes que exis­tem.. É a razão pela qual existe um Asean Group, a União Afri­cana, a união de países latino- americanos. Os agrupamentos regionais têm muito sentido nos dias atuais. A Europa deve decidir o que deseja de fato fa­zer e se concentrar nisso.

A Europa é boa nesse tipo de ação?

Não. É por isso que a UE causa irritação, ira e desacordo. Mas não significa que a ideia básica está errada. O que a Europa de­ve fazer é estabelecer objetivos muito claros e com muito foco.

Por exemplo?

O foco deve ser no emprego, na a economia, assegurar que você vai se movimentar num merca­do único de uma maneira que permita uma participação subsi­diária adequada. Deve se asse­gurar que estamos ganhando o máximo de vantagem competi­tiva que o mercado único pode nos dar. Na política energética existe muita coisa que pode­mos fazer, envolvendo os siste­mas de redes por exemplo. Da mesma maneira, no caso da imi­gração e do crime é preciso con­trolar nossas fronteiras, um controle adequado da imigra­ção e de combate ao crime. Com frequência tudo isso aca­ba numa confusão burocrática. No campo da política externa e da defesa comuns muita coisa também pode ser feita se a Eu­ropa se concentrar nisso. O fa­to de a França partir para o Mali sozinha é realmente duro pa­ra os franceses. Se houvesse uma política externa e de defe­sa comum, poderíamos fazer muito mais.

Qual pode ser o resultado do referendo na sua opinião, quando for finalmente realizado?

No final, acredito, há uma sóli­da maioria que defende a nossa permanência na União Euro­péia. Você sabe, referendos são instrumentos imprevisíveis de vontade democrática. Por isso, não é sensato realizar um refe­rendo salvo se for obrigado a is­so. O que os governos devem fa­zer é governar.