Título: A miragem do mensalão
Autor: Fabrini, Fábio ; Álvares, Débora
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/02/2013, Nacional, p. A4

A condenação de importantes quadros políticos no julgamento do mensalão talvez tenha suscitado a miragem de uma revolução ética em curso no País, gerando uma redução drástica dos graus de tole­rância com a corrupção, desvios de conduta e atitudes mal explicadas. Some-se a isto o suces­so da Lei da Ficha Limpa, que nas últimas elei­ções barrou País afora centenas de candidatos condenados em órgãos colegiados do Judiciário.

Imaginar-se-iam extintos episódios como a eleição de um Renan Calheiros para a presidên­cia do Senado - ele que, há poucos anos, renunciou a esse cargo ao ser colhido num escândalo de paga­mentos de pensão por lobista e notas fiscais obscu­ras em negócios com gado.

Os que se iludiram, menosprezaram fatores polí­ticos cruciais. Primeiramente, Calheiros figura en­tre as principais lideranças políticas do país (goste-se ou não disso), requisitada por diferentes gover­nos, desde Collor (que lhe projetou nacionalmen­te), passando por Fernando Henrique (de quem foi Ministro da Justiça) e Lula (a quem garantiu apoio do PMDB no Senado).

Em segundo lugar, seu partido é peça impres­cindível à sustentação dos governos, não tendo sido preterido por nenhum presidente desde Sarney - exceto por Collor, que caiu. Como Renan é peça central no PMDB, rechaçá-lo significaria afrontar o partido - algo temerário em nosso pre­sidencialismo de coalizão, no qual a perda de um partido do tamanho e da importância do PMDB decerto implicaria imensas dificuldades para go­vernar.

Em terceiro lugar, parlamentares operam com base numa ética distinta da moralidade circundan­te (a dos cidadãos comuns), pois indiferente a transgressões dela. E como poucos ali podem ati­rar a primeira pedra para agradar ao público, tal ética exige proteção recíproca.

Portanto, a eleição de Renan não surpreende, é o esperado. Surpreendente teria sido sua derrota. Raciocínio semelhante vale para entender a vir­tual escolha de Henrique Eduardo Alves para a presidência da Câmara. Deputado de onze manda­tos (iniciou o primeiro com apenas 21 anos), Alves é uma das principais lideranças de seu partido e já estava definido como o nome para suceder Marco Maia desde o acordo firmado entre PT e PMDB no início da legislatura.

Ademais, conta com o apoio de importantes lide­ranças da oposição, como o prefeito de Salvador, ACM Neto, ex-líder do DEM na Câmara, ainda influente sobre os antigos liderados. Mostra de que não só ao governo interessa ter Alves presi­dindo a Câmara, assim como não só os parla­mentares governistas são indiferentes em rela­ção ao cometimento de desvios dos quais o de­putado é agora acusado. De novo, nenhuma sur­presa, pois a peculiar ética parlamentar é atribu­to institucional e, portanto, de quase todos - independentemente de seus partidos e alinha­mentos circunstanciais.

Parte da miragem se deve à percepção equivo­cada de que a lógica do STF se espalharia automaticamente para todo o sistema político. É bom lembrar que os Poderes não são apenas independentes; são diferentes.

* Cientista Político, professor do Curso de Administração Pública da FGV-SP e pesquisador do CEPESP-EALSP-FGV e do CNPq