Título: O enterro da responsabilidade fiscal
Autor: Salto, Felipe
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/02/2013, Espaço aberto, p. A2

Desde 2006 o go­verno federal vem estabele­cendo novos pa­drões para o de- senho das políti­cas macroeconômicas no Bra­sil, o que foi intensificado no go­verno Dilma RoussefF. Os objeti­vos são: câmbio desvalorizado, juro real baixo e crescimento de 4,5% ao ano. O instrumento: ex­pansão fiscal. A economia já es­tá colhendo os frutos dessa "no­va matriz" de política econômi­ca: crescimento baixo e inflação alta. Adicionalmente, tal con­junto de políticas lega à econo­mia e à sociedade um Estado obeso, menos transparente e que regride no âmbito das insti­tuições de finanças públicas.

A expansão serve tanto ao controle da inflação (via deso­nerações pontuais) como à me­ta de produzir crescimento a todo custo, seja pelo avanço das despesas, seja po rmeio de paco­tes de estímulos e crédito públi­co subsidiado pelo restante da sociedade, não escolhida para participar do banquete. A co­roar todo o processo está a con­tabilidade criativa, que serve co­mo maquiagem para o lado feio expansão.

A política fiscal no País to­mou um rumo incompatível com a sustentação de um regi­me de metas para o superávit primário. Não apenas os descontos do PAC são utilizados para reduzir a meta anual de su­perávit, como um volume im­portante de gastos vem sendo realizado sem a devida contabi­lização na despesa primária. É o caso dos subsídios implícitos nas operações de concessão de crédito ao BNDES, que oneram as contas públicas em R$ 15 bi­lhões ao ano, pelo menos, mas que aparecem apenas parcial­mente na desagregação das des­pesas. Além disso, um fluxo ele­vado de receitas tem sido fabri­cado pelo governo por meio des­sa relação espúria entre os ban­cos públicos e o Tesouro Nacio­nal. Trata-se das receitas de divi­dendos pagos à União.

O problema resume-se no fa­to de que as receitas de dividen­dos - que foram gerados na pró­pria atividade realizada pelos bancos públicos - entram na conta do superávit, mas as des­pesas com os subsídios, não. A diferença, simplesmente, aca­ba por produzir um resultado primário maior do que aquele que efetivamente vem sendo realizado pelo governo. O total em créditos do Tesouro junto ao BNDES já superou a marca dos R$ 350 bilhões, conforme abertura da dívida líquida do se­tor público consolidado, divul­gada pelo Banco Central.

Como se não bastassem tais artifícios, essa contabilidade criativa, o governo decidiu sa­car novos instrumentos do estojo de maquiagem. No último dia de 2012 o Tesouro resgatou R$ 12,4 bilhões do Fundo Soberano do Brasil (FSB), registrou recei­ta de R$ 2,3 bilhões em títulos pagos pelo BNDES à guisa de antecipação de dividendos e de R$ 4,7 bilhões, por meio do mes­mo mecanismo, usando a Caixa Econômica. Agora, em fevereiro, anunciou-se a cereja do bo­lo: os R$ 20 bilhões previstos pelo governo em renúncias fiscais com as medidas de desone­ração tributária poderão, da mesma forma que os gastos do PAC, compor o montante a ser abatido da meta de superávit primário, como se o gasto não tivesse sido realizado.

Em verdade, tais medidas re­presentam o abandono definiti­vo do regime de metas de supe­rávit primário. E evidenciam que o governo não medirá esfor­ços parabuscar subterfúgios ca-pazes de ampliar a intensidade da política fiscal mal-acabada instituída em 2009. Pisará fun­do no acelerador do gasto públi­co, reduzindo o potencial de crescimento do produto inter­no bruto (PIB).

Quanto ao FSB, é preciso lem­brar que os recursos sacados pa­ra produzir resultado, às pres­sas, foram originados no pró­prio orçamento fiscal, em 2008, quando a arrecadação apresen­tava recorde atrás de recorde. Isto é, reservou-se 0,5% do PIB, num fundo criado pela Fazen­da, que poderia simplesmente servir para fazer política efetiva­mente "anticíclica". No entan­to, como se sabe, os objetivos do fundo eram outros: intervir no mercado de câmbio a fim de produzir a taxa cambial depre­ciada almejada pelo governo.

Agora, passados quatro anos, e após o fundo amargar prejuízos vultosos, por causa de sua políti­ca equivocada de investimento em ações da Petrobrás, o gover­no age de maneira a fazer crer que nunca imaginara o FSB co­mo um instrumento da Fazen­da para ampliar seu potencial de atuação no mercado cam­bial. Atuou, de forma pouco transparente e tomando a medi­da aos 45 minutos do segundo tempo, para apagar o incêndio produzido pela sua própria inge­rência, motivada pelo desprezo ao papel exercido pela responsa­bilidade fiscal, nos últimos 15 anos, na sustentação do proces­so de crescimento e de controle inflacionário.

Há diversas maneiras de construir um arcabouço de instru­mentos e de políticas com o fim de garantir a austeridade fiscal. A fixação de metas para o supe­rávit primário, como é sabido, pode ser questionada em vários pontos, mas seu abandono ape­nas deveria ocorrer na hipótese de o governo ter construído uma alternativa melhor para substituir esse mecanismo de geração de esforço fiscal e redu­ção da dívida/PIB.

O Brasil já passou por mo­mentos de crise da dívida inter­na, quando a credibilidade do País era baixa, a confiança do restante do mundo na econo­mia doméstica era mínima e o governo não dispunha de ne­nhum mecanismo institucional para controlar a evolução de suas despesas. Mas conseguiu conquistar uma situação positi­va nessa seara, que teve efeitos extremamente benéficos sobre a dinâmica de crescimento, o controle inflacionário e a sus­tentação de poupança externa razoavelmente elevada para ali­cerçar a aceleração do consumo observada nos últimos anos.

Hoje em dia, com a marcha à ré engatada pelo governo, no campo fiscal conseguiremos um feito quase impossível de ser empreendido, mesmo com tanto empenho enterrar o sis­tema de metas fiscais e, em seu lugar, deixar um enorme ponto de interrogação.