Título: Bento XVI promete obediência a novo papa e diz ser apenas um peregrino
Autor: Chade, Jamil
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/03/2013, Vida, p. A13

Enviado especial CastelGandolfo e Vaticano

Eram exatas 20 horas quando os sinos em Castelgandolfo soaram. Os dois representantes da Guarda Suíça que protegiam o palácio episcopal fecharam os imensos portões e deram por concluída, pelo menos temporariamente, uma missão que já dura séculos. O homem que eles tinham a responsabilidade de proteger já não era mais papa. Ontem, Bento XVI deu adeus ao seu pontificado e ao mundo, prometendo "obediência incondicional" ao próximo pontífice após ter aberto as portas da Igreja para sua primeira renovação em mais de 30 anos.

Joseph Ratzinger foi eleito em 2005 e, nos oito anos de pontificado, o caráter conservador prevaleceu em suas decisões e declarações. Mas a renúncia já começa a ser vista como uma das maiores reformas na Igreja em décadas porque, na prática, a decisão obrigou a instituição a se renovar.

A despedida começou pela manhã, quando Bento XVI recebeu cardeais na Sala Clementina, em seu palácio. Voltou a apontar para a dificuldade de seu pontificado e insistiu que era a hora de a Igreja se unir, em mais uma insinuação de que as disputas de poder estão minando a credibilidade da instituição. "Que o Colégio de Cardeais trabalhe como uma orquestra, onde a diversidade - uma expressão da Igreja universal - sempre trabalhe para um acordo elevado e harmonioso."

Para os 144 cardeais presentes na despedida, o recado foi claro: este não é o momento de criar divisões ainda mais profundas; o conclave deve ser usado para reunificar as forças da Igreja.

Em seguida, do alto de seu trono, Bento XVI fez uma das declarações que ficarão marcadas: "Entre vocês está o próximo papa, a quem eu prometo minha reverência e obediência incondicional". Segundo o próprio Vaticano, jamais na história um papa havia feito tal declaração. "Foi algo muito profundo e muito inovador", destacou Federico Lombardi, porta-voz da Santa Sé.

Última etapa. A mensagem não foi dada por acaso. Bento XVI continuará a ser chamado de sua santidade e terá o direito de usar roupas brancas, exclusividade do papa. Desde o anúncio da renúncia, sua influência sobre o próximo papa é alvo de debates, principalmente porque ambos viverão, a partir de agora, no mesmo país, o menor do mundo.

A última etapa da despedida começou pouco antes das 17 horas. Bento XVI deixou seus aposentos com a ajuda de uma bengala, e as portas foram lacradas - elas só poderão ser abertas pelo próximo papa. Aplaudido pelos cardeais enquanto os poucos moradores da Cidade do Vaticano choravam, ele entrou em um helicóptero e decolou rumo a Castelgandolfo. O voo, transmitido ao vivo para todo o mundo, marca a contradição do papa que teve de renunciar para ser escutado.

Com o pôr do sol desenhando o horizonte, Bento XVI sobrevoou o Coliseu e outros monumentos romanos até desembarcar no seu destino final, uma cidade que por séculos é usada como casa de verão do papa.

Lá, a população lotou a praça central para o último adeus e, quando Bento XVI apareceu no balcão, foi ovacionado. O 264.0 sucessor de Pedro respondeu como um vizinho. "Queridos amigos, vocês sabem que esse dia é diferente para mim dos demais. Não sou mais o pontífice supremo da Igreja Católica. Serei até as 20 horas, mas não além", disse. "Sou agora apenas um simples peregrino começando a última etapa de sua peregrinação na Terra", afirmou, prometendo que continuará a lutar "pelo bem da humanidade".

Suas últimas palavras como papa não poderiam ser mais humanas: "Obrigado e boa noite". Desde a noite de ontem, o Vaticano fica provisoriamente sob o comando do camerlengo - o secretário de Estado, cardeal Tarcisio Bertone -, encarregado de questões administrativas até a eleição do novo papa.

Purificador. A primeira renúncia em 600 anos abriu ontem um período de Sede Vacante no Vaticano que, para muitos, obriga a Igreja a pensar em uma reforma profunda para lidar com sua crise. "A última grande mudança ocorreu na eleição em 1978. A eleição de Bento XVI foi uma continuidade. Mas é sua renúncia que marca uma virada", disse um dos cardeais latino-americanos, na condição de anonimato.

Com escândalos de corrupção, disputa de poder e abusos sexuais, cardeais que entrarão para o conclave são unânimes em dizer que o período mais difícil da Igreja está só começando. "Precisamos de um purificador que mantenha e aprofunde o trabalho de Bento XVI", disse o cardeal de Havana, Jaime Ortega.

Às 20 horas, o anel de pescador de Bento XVI foi quebrado, assim como sua infalibilidade. "Com um só gesto, Bento XVI foi revolucionário e histórico para o futuro da Igreja", disse o cardeal argentino Estanislau Karlik