Título: Carter na berlinda
Autor: Margolis, Mac
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/03/2013, Internacional, p. A9

Quando o ex-presidente americano Jimmy Carter fala, os líderes mundiais ficam atentos. Mesmo quando não gostem do que diz. Assim foi no caso dos militares argentinos e chilenos, que chamaram de "ingerência" as críticas de Carter aos anos de chumbo latino.

O general Ernesto Geisel desconfiou que, por trás da bandeira de direitos humano da Doutrina Carter, ocultavam-se desenhos hegemônicos da Pax Americana e acabou rompendo o antigo acordo militar com Washington.

De bronca em bronca, ele construiu seu prestígio como um guerreiro global da liberdade democrática que ainda moralizou a cínica política internacional americana.

Carter pode ter decepcionado na Casa Branca, mas conquistou uma sobrevida brilhante que lhe trouxe honrarias, honorários e holofotes. Até hoje, o aval do Centro Carter, fiscal mor de eleições internacionais, é venerado como o padrão ouro para democracias incipientes e aviso prévio para autocratas na berlinda.

Mas o globo também gira. Hoje os déspotas amam as urnas e as usam como purpurina para democrata ver. As críticas a Carter partem agora não dos quartéis, mas de seus antigos bastidores democráticos.

Veja na Venezuela, uma nação rachada entre o luto e a euforia por Hugo Chávez. Na mídia, nas universidades e nas trincheiras da oposição ao governo bolivariano, rejeição ao americano só cresce. "Fora Carter" e "não se meta" são os refrãos mais ouvidos em Caracas.

O inconformismo não é de agora e foi impulsionado pelo papel que Carter desempenhou em "avalizar" as eleições na gestão chavista. De 1998 a 2004, Carter foi presença fácil na Venezuela, sempre ao convite do governo Chávez. Em todas as vezes, foi só elogios ao processo e a lisura dos pleitos. Foi muito além da vista grossa.

Quase ninguém disputa a popularidade de Chávez, um comunicador por excelência, com simpatia e carisma raros. E, diferente dos generalíssimos clássicos, não mandou rechear umas com votos de mortos nem sumia com os dissidentes. Mas driblou as leis ao seu bel prazer e abusou dos decretos palacianos. Ainda potencializou sua vantagem loteando o conselho eleitoral de juizes amigos e retalhando zonas eleitorais para favorecer distritos chavistas.

Sim, deixou a oposição falar, mas lhe caçava a palavra ao invadir as redes nacionais (mais de mil vezes, ao todo) para transmitir intermináveis discursos de campanha, embalados como informes de interesse nacional.

E quando os adversários insistiam, inventou moda. Em 2004, Chávez sobreviveu a uma votação para precipitar sua saída do poder, mas não perdoou. Quem votou contra

o bolivariano teve seu nome divulgado para a imprensa e milhares perderam seu emprego. Carter nada falou. Desta vez e em todas as eleições que se seguiram.

Até quando estava longe do país, nunca deixou de afagar o chavismo. Há alguns meses qualificou o processo eleitoral venezuelano com "um dos melhores do mundo". Detalhe: isso foi em 25 de setembro, duas semanas antes da eleição presidencial -desqualificando de antemão qualquer protesto que viria.

Carter já apanhou antes. Mas a crítica - feita por déspotas e radicais raivosos - só aumentava sua reputação. Agora, a bolha começa a estourar.

Talvez seja exagero afirmar que Carter tenha colocado seu prestígio à venda, como acusou Alan Dershowitz, ilustre advogado que o acusou de aceitar doações milionárias de xeques que pregavam a destruição de Israel. (Em tempo: o Centro Carter não se pronuncia sobre direitos humanos no Oriente Médio.)

Mas quando Carter emenda sua carta de condolência aos parentes de Chávez com loas à "visão" do bolivariano e aufere seu "compromisso para melhorar a vida de milhões de compatriotas", nao admira que muitos democratas deixam de bater palmas.