Título: O exemplo de Santa Maria
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/03/2013, Notas e informações, p. A3

O que se esperava das autorida­des policiais de­pois da tragé­dia do incêndio na boate Kiss em Santa Maria, no Rio Gran­de do Sul, dia 27 de janeiro - que deixou até agora (ainda há feridos internados em hospi­tais) um saldo de 241 mortos -, era uma investigação rigorosa e abrangente do caso. O traba­lho da polícia civil gaúcha, que acaba de apresentar o resulta­do do inquérito - 52 volumes com 13 mil páginas e 810 depoi­mentos -, correspondeu à ex­pectativa. O número e a qualifi­cação das pessoas indicadas co­mo responsáveis pela tragédia - em vários graus - mostram que a polícia não se dobrou a influências e conveniências de qualquer tipo.

Foram responsabilizadas di­reta ou indiretamente pelo in­cêndio 28 pessoas, das quais 9 indiciadas por homicídio dolo­so, por terem assumido o risco de matar. Entre eles, os dois donos da boate, a mãe e a irmã de um deles, que também apa­recem como proprietárias do estabelecimento, o cunhado de um deles, que era gerente, e dois músicos da banda que to­cava naquela noite. Estes dois e os empresários estão presos. Completam esse grupo dois bombeiros responsáveis pelos alvarás de licenciamento da boate. Afirma a polícia que eles permitiram o funcionamento da boate mesmo diante de irre­gularidades comprovadas, co­mo a existência de apenas uma saída - logo, sem porta de emergência -, número insufi­ciente de extintores e a coloca­ção de obstáculos que dificulta­ram a fuga.

A surpresa da população de Santa Maria - e até mesmo das famílias das vítimas -, que es­peravam o indiciamento ape­nas dos dois donos da boate e dos integrantes da banda, co­meçou com os dois bombeiros e culminou com a presença en­tre os responsáveis do prefeito Cezar Schirmer, acusado de ho­micídio culposo e improbida­de administrativa, porque - afirma a polícia - houve falhas da prefeitura na emissão de al­varás e na fiscalização da boa­te. Também por homicídio cul­poso foram responsabilizados dois secretários e dois funcio­nários municipais. Como o pre­feito tem direito a foro privile­giado, cópia do inquérito foi enviada ao Tribunal de Justiça.

A reação da população de Santa Maria é a mesma de to­dos os brasileiros, que ficaram chocados com essa tragédia. Em casos semelhantes, a regra tem sido o inquérito restringir ao máximo o número de indi­ciados, em geral aos donos do estabelecimento afetado. Os outros - como os bombeiros e as autoridades municipais, que verificam as condições de segu­rança do local e concedem os alvarás de funcionamento - costumam ficar de fora, embo­ra as suas responsabilidades se­jam evidentes. Seria muito bom que essa mudança de com­portamento se tornasse a regra para as autoridades policiais de todo o País daqui para a frente.

Segundo o delegado Marcelo Arigony, que fez a apresenta­ção do inquérito, "houve uma conduta no mínimo temerária, muito ruim, dos gestores do lo­cal", referindo-se a instalações inadequadas, a reformas feitas sem a necessária assistência técnica e a "uma série de irre­gularidades quanto aos alva­rás". Para ele, "foi uma temeri­dade muito grande a casa fun­cionar daquele jeito". A tragé­dia, que tirou a vida de tantos jovens, é a triste comprovação de que o delegado tem inteira razão no que diz.

O governador Tarso Genro fez o que devia, elogiando o tra­balho da polícia e afastando o coronel Moisés Fuchs, coman­dante do Corpo de Bombeiros de Santa Maria. Quanto ao pre­feito Cezar Schirmer, ao dizer que "estamos diante de um pro­cesso de natureza política", rea­ge como em geral costumam fa­zer as autoridades quando se veem em dificuldades.

A palavra está agora com o Ministério Público, que dirá se aceita ou não as conclusões do inquérito policial. Em seguida, o caso irá para a Justiça. E claro que cada uma dessas institui­ções tem seus critérios técni­cos e padrões de conduta para determinar a responsabilidade de cada um dos acusados pela polícia, que é preciso respeitar e acatar. Isso não impede a po­pulação - a tragédia de Santa Maria diz respeito a todo o País - de esperar uma decisão rigo­rosa que previna sua repetição.