Título: Feliciano desgasta e prejudica imagem dos evangélicos
Autor: Arruda, Roldão
Fonte: O Estado de São Paulo, 31/03/2013, Nacional, p. A6

A permanência do pastor Marco Feliciano na presidência da Comissão de Direitos Humanos da v> Câmara vai desgastar a imagem do mundo evangélico no País, provocar constrangimentos e rejeições. A opinião é do também pastor evangélico Ricardo Gondim, teólogo, mestre em ciência S da religião e líder da Igreja Betesda, de linha progressista. Nesta entrevista ao Estado, ele critica as declarações feitas por Feliciano segundo as quais a África e seus habitantes são " "amaldiçoados" por Deus. Tal tipo de teologia, diz Gondim, é "racista e fundamentalista na sua essência", Ela tem origem no pensamento colonialista, que precisava demonizar e rebaixar os negros para justificar a escravidão.

Aos 58 anos, o pastor passou pelas igrejas Presbiteriana e Assembleia de Deus, antes de se vincular à Betesda, que em hebraico significa "lugar da misericórdia de Deus". Diferentemente da maioria dos colegas pastores, Gondim defende o direito dos gays ao casamento civil.

• Como pastor, de que maneira analisa a polêmica que envolve Marco Feliciano e a Comissão de Direitos Humanos?

Fico muito constrangido com o que está ocorrendo.

• Acha que as críticas a ele são dirigidas a todos os evangélicos?

Ele fala em cristofobia. O Marco Feliciano se apresenta como representante não só do mundo evangélico, mas de todo o protestantismo. Na verdade, ele pouco representa das tendências protestantes. Foi eleito por um segmento alienado politicamente. Candidatos como ele são eleitos, geralmente, para se tomarem os representantes de sua igreja no parlamento. Eles se preocupam mais com os interesses da igreja do que com as questões que dizem respeito a todo o País.

• A que atribui o antagonismo entre o pastor e os grupos de direitos humanos?

Ele se antagonizou com o Brasil porque expressou pelo Twitter e, depois, num culto, opiniões sobre a questão dos negros. Disse que são descendentes da parte amaldiçoada dos filhos de Noé, os filhos de Cam. É interessante , observar que ele não criou nada ao fazer tais afirmações. Essa teologia é muito antiga, muito anterior a ele, persistindo até hoje em alguns poucos segmentos fundamentalistas. Tem origem entre os colonialistas, que dividiam o mundo em três áreas - o ocidente, o oriente e o sul Nesta última teriam ficado os possíveis descendentes do personagem bíblico, os amaldiçoados. O Feliciano lucra em cima dessa teologia, mas não acrescenta nem desenvolve nada. É apenas o porta-voz de um grupo que, no atual contexto religioso, ainda replica argumentos usados por países colonialistas para a dominação e exploração dos mais pobres, especialmente na África.

• Pode-se afirmar que é uma teologia superada, fora de uso?

Não. Ela ainda é usada por setores de direita, ultraconservadores. Em 2010, o tele-evangelista americano Pat Robertson, dono de um canal de televisão, disse que a grande tragédia provocada pelo terremoto no Haiti naquele ano era decorrente de um pacto que os haitianos haviam feito com o diabo, quando lutavam para se livrarem do jugo da França e se tornarem independentes. Em outras palavras, em 1804 eles venderam a alma ao demônio, que veio cobrar a dívida agora, dois séculos depois. A manifestação de Robertson foi uma asneira, uma estupidez que provocou manifestações de repúdio em amplos setores da sociedade americana. Mas ele não estava falando sozinho. Existem segmentos, dos quais Feliciano faz parte, que; repetem essas coisas.

• É 0 que pregam nas igrejas?

Sim. Enquanto o Feliciano dizia essas coisas num círculo religioso restrito, era bem recebido pelos seus pares. Tem uma expressão que define isso da seguinte maneira: quando você prega para o coral, é bem aceito por ele. Ao se tomar um homem público, o discurso dele transbordou, extravasou o espaço religioso e se tomou passível de crítica pela sociedade civil.

• É possível afirmar que o discurso dele é racista?

É racista na sua essência. Nasceu do racismo, dos interesses coloniais de menosprezar e demonizar o negro para justificar a sua exploração.

• Esse tipo de discurso não parece mais adequado aos EUA, onde a questão da integração ainda incomoda alguns setores?

Não se deve esquecer que as lideranças evangélicas no Brasil estão se orientando basicamente por autores norte-americanos. Há pouco mais de meio século, quando se debatia o casamento inter-racial nos EUA, grupos conservadores diziam que esse casamento era proibido pela Bíblia. Na época em que morei nos EUA e viajei pelo sul daquele país, fiquei impressionado com a forma como o movimento evangélico ainda está dividido, segregado do ponto de vista racial. Negros e brancos ainda congregam em igrejas diferentes.

Certa vez acompanhei um pastor que havia ido a um hospital visitar uma pessoa muito doente. Durante a visita, ele disse ao doente que há muito tempo não o via na igreja e que estava interessado em saber o motivo daquele afastamento. Ele respondeu que não ia mais porque a igreja estava sendo freqüentada por negros. O pastor quis amenizar, dizendo que os negros também são filhos de Deus, mas o doente retrucou na hora que negros não têm alma. Perdura ali a ideia de que o negro é um cidadão menor.

• Como analisa essa ideia de uma maldição que recai sobre um continente inteiro?

Além de inoportuno, é um discurso de um simplismo político absurdo, inadmissível para um deputado federal O Feliciano desconsidera que o continente africano, apesar de retalhado e dividido politicamente pelos países colonialistas, ainda abriga milhares de nações, etnias, dialetos, culturas. Quais delas são as amaldiçoadas? De qual povo ele está falando? Qual etnia? Eles não constituem um bloco único como quer o deputado.

• Não existe a possibilidade de 0 deputado estar sendo atacado só pelo fato de ser evangélico?

As declarações dele são inaceitáveis independentemente do fato de ser evangélico. Qualquer pessoa que dissesse o que ele disse enfrentaria problemas. Isso não quer dizer que a associação que se faz entre Feliciano e o mundo evangélico seja ilegítima, porque, como já disse, existem segmentos que ensinam essa teologia. Nas vezes em que me manifesto sobre isso, sempre aparecem pessoas me questionando: mas isso não está escrito na Bíblia? Não é uma verdade bíblica?

• Não acha estranho esse tipo de teologia ter seguidores no Brasil?

Acho. Mas não se pode esquecer que aqui também temos os skinheads. O único país do mundo que não poderia ter ações desse grupo é o Brasil, mas, infelizmente, nós temos.

• E quanto às restrições do deputado aos gays?

O Congresso deve tratar a questão como uma demanda civil. A comunidade gay aspira por relacionamentos juridicamente estáveis e, na minha opinião, as demandas civis de qualquer grupo precisam ser contempladas pela sociedade e seus órgãos de representação. Um exemplo: foi aprovada agora uma série de leis trabalhistas que valorizam o trabalho das domésticas - o que era uma demanda justa. Todas as demandas justas precisam ser contempladas sem a necessidade de moralização exacerbada do debate. Não existem grupos que estão acima de todos os outros.

• Acha que o Supremo Tribunal

Federal acertou quando reconheceu os direitos dos gays?

Sim. O Supremo foi de uma felicidade extrema quando olhou para a questão homossexual de forma isenta, livre de qualquer pressão, tanto da Igreja Católica como de grupos protestantes e evangélicos. Numa sociedade que se pretende laica, é assim que deve ser. O Sérgio Buarque de Holanda já disse que o Estado não é um desdobramento maior da família ou de grupos de interesses. O Estado tem que se distinguir, tem que legislar à parte, pois não se trata de uma família grande. Se não for dessa maneira, o Brasil cai no patriarcalismo, fica sob o controle de oligarquias patriarcais, que irão legislar a partir de seus interesses. A questão gay deve ser contemplada pela sociedade como a reivindicação de um grupo que busca tratamento igual perante a lei.

• Feliciano deve renunciar ou permanecer no cargo?

Deve renunciar logo. A teimosia dele em permanecer no cargo vai trazer prejuízos enormes para o grupo que pretende representar. O desgaste para o mundo evangélico já é patente. Existe o risco de rejeição ao grupo. Se ele realmente se vê como representante do mundo evangélico no parlamento, a renúncia seria a atitude mais lúcida diante do atual estado de coisas.

Deputado retira fotos de site e critica ‘crueldade das pessoas"

Breno Pires

O presidente da Comissão de Di-reitos Humanos e Minorias da Câmara, Marco Feliciano (PSC- SP), apagou todas as imagens que havia publicado na rede social Instagram. Por outro lado, publicou várias mensagens no Twitter, reafirmando a permanência à frente da comissão, apesar da onda de protestos. “Aos amigos do Instagram, peço desculpas, mas fui obrigado a retirar as fotos, pois não há limites para a crueldade das pessoas em seus recados”, disse ontem no Twitter o deputado e pastor. Ainda na noite de sexta-feira, o deputado reproduziu, em retuítes, mensagens de 15 pessoas com o mesmo mote: “Marco Feliciano me representa”. Trata-se de uma resposta a uma frase comum nos protestos a favor da saída dele do cargo: “Marco Feliciano não me representa”. Em outras postagens, já na manhã deste sábado, o pastor e deputado agradeceu “as milhares mensagens de apoio”, em tom de desabafo. “Agradeço o apoio dos pais e mães de todas as religiões, inclusive aos que não tem religião e que ao me encontrar dizem: Não desista, pastor.”

Judas.

Cerca de 50 pessoas se reuniram em Brasília ontem em um novo protesto contra Feliciano. Na já tradicional malhação de Judas, que acontece no sábado de Aleluia, o traidor de Cristo foi representado na figurado deputado. Na fisionomia do boneco, uma foto do rosto do pastor. Os manifestantes bateram nele com pedaços de madeira, como manda a tradição. /COLABORARAM DÉBORA ÁLVARES e RENÉ MOREIRA