Título: Pyongyang não é imprevisível, muito menos suicida
Autor: Trevisan, Cláudia
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/04/2013, Internacional, p. A8

Para chefe da missão do Brasil na Coreia do Norte, país mantém programa nuclear para evitar ataque no futuro

A Coreia do Norte não vai abandonar o seu programa nuclear, visto pelo regime como uma garantia de sobrevivência e uma barreira contra uma eventual invasão do país, acredita o embaixador do Brasil em Pyongyang,

Roberto Colin. "Os norte-corea-nos dizem que aprenderam muito com a experiência dos outros e não querem ter o mesmo destino de países que não puderam se defender, como a Iugoslávia, Iraque ou a Líbia", afirmou o embaixador ao Estado, na sede da embaixada que dirige desde março de 2012. A seguir, trechos da entrevista:

• Qual é 0 risco real de um confronto na Península Coreana?

Um funcionário do Ministério das Relações Exteriores me disse: "Nós não queremos guerra".

O governo tem afirmado que as armas nucleares só seriam usadas como resposta a um ataque ou agressão. Na segunda-feira, eles anunciaram uma legislação sobre o assunto, segundo a qual o principal objetivo das armas nucleares é o de garantir a dissuasão. A lei diz que elas só poderão ser usadas para repelir a invasão ou retaliar o ataque por parte de uma potência nuclear. Eles não atacariam antes de serem atacados.

• Existe a possibilidade de recuo no programa nuclear?

Acho que não. A condição que eles colocaram desde o início é que só recuariam no contexto de uma desnuclearização mundial. Os norte-coreanos dizem que aprenderam muito com a experiência dos outros e não querem ter o mesmo destino de países que não puderam se defender, como a Iugoslávia, Iraque ou a Líbia. Essa seria a única forma de evitar que lhes aconteça o mesmo. Pela lógica norte-coreana, as armas nucleares seriam a garantia última de que não seriam atacados. Mas em última análise, é a garantia de sobrevivência do regime. Porque o que está por trás de tudo o que acontece é o desejo de sobrevivência do regime. Eles dizem que foram obrigados a produzir armas nucleares em razão do que chamam de hostilidades dos EUA, que eles sentem como uma ameaça a sua própria sobrevivência.

• Existe solução para a crise da Península Coreana?

Caso EUA e Coreia do Sul persistam em colocar a condição de que primeiro o norte têm de se desarmar para depois haver um diálogo, creio que o impasse continuará. Há um ano, eles inscreveram na Constituição que são uma potência nuclear. Eles têm repetido, e isso foi dito a mim no Ministério das Relações Exteriores, que as armas nucleares não são para barganha política nem econômica.

• É difícil prever o que ocorre na Coreia do Norte?

Não. Ao contrário do que muitos pensam, eles não são nem imprevisíveis nem irracionais, muito menos suicidas. Tudo é uma questão de procurar entender qual é a lógica por trás de suas ações.

Quanto tempo o regime sobreviverá isolado, com uma economia sucateada e restrições de acesso a alimentos e energia?

Faz duas décadas que se espera o colapso da Coreia do Norte, que já passou por momentos muitos piores nos anos 90, depois do fim da União Soviética e dos países socialistas da Europa Oriental, que eram os grandes mercados para seus produtos e fonte de petróleo e energia. Da noite para o dia, eles perderam tudo isso. Com catástrofes naturais, isso levou a uma situação de fome e, mesmo assim, o país não quebrou.

• 0 que sustenta 0 regime?

Na minha opinião, é sobretudo a ideologia, mais do que a repressão. É verdade que o Estado é onipresente e onisciente, mas acho a coesão nacional se dá pelo doutrinamento e a ideologia juche (criada por Kim Il-sung, que prega a autos-suficiência).

• Como o sr. define 0 sistema da Coreia do Norte?

É muito difícil entender esse país usando apenas um critério, como o de que é um país socialista, comunista ou até stalinista, como alguns dizem. Aqui já houve duas sucessões dinásticas e, quanto ao aspecto ideológico, ele tem por vezes um caráter quase religioso. É um país socialista, mas é claramente monárquico, tem fortes elementos de uma teocracia e tudo sobre uma base neoconfucionista. O nacionalismo também é muito forte, o que faz com que a forma de socialismo adotada aqui seja muito distinta da que existiu em outros países, nos quais o nacionalismo não era tão forte e foi até negado..

• Os EUA e a Coreia do Sul realizam exercícios militares todos os anos. Por que desta vez a reação foi tão contundente?

É uma questão de autoafirmação. Pela pouca idade que tem, o novo líder nunca foi submetido a um teste. O pai o indicou como sucessor em 2010 e teve pouco tempo para prepará-lo. Esse momento se apresentou como uma oportunidade para Kim Jong-un mostrar tanto para o público interno quanto externo que é duro e decidido.

• 0 que a Coreia do Norte espera obter com esse enfrentamento?

Essa retórica dura, que atingiu níveis não vistos até agora, tem antes de tudo o objetivo de chamar a atenção do mundo - e principalmente dos americanos para a questão não resolvida que é a divisão da Coreia, que já perdura 60 anos. O que eles desejam é a normalização das relações com os EUA e o reconhecimento do status de potência nuclear, como ocorreu com a índia e o Paquistão. Em uma declaração divulgada sábado, eles disseram que estão cansados dessa situação em que não há nem paz nem guerra. A tensão e as sanções têm inviabilizado o desenvolvimento do país.

• 0 regime sobreviveria em uma situação de normalidade?

Isso vai depender do que eles fizerem caso o ambiente externo melhore. Eles têm disposição para mudanças? De um ano para cá foram emitidos sinais de que sim, mas é algo muito difícil de ser feito. Muitos perguntam por que a Coreia do Norte não faz reformas semelhantes às realizadas na China e no Vietnã, ma5 aqui a situação é diferente. Aqui há um termo de comparação, que é a Coreia do Sul. / C.T.