Título: A SEDUÇÃO DO PODER
Autor:
Fonte: O Globo, 24/02/2005, Opinião, p. 7

Otroca-troca de partido, que já movimentou quase uma centena de deputados federais nos dois primeiros anos desta legislatura, aponta uma das mazelas da política nacional. Com razão, eleitores clamam por um freio a essas migrações que desrespeitam os resultados eleitorais, debilitam os partidos e desqualificam a democracia.

Ao analisar esse fenômeno recorrente na política brasileira após a redemocratização promovida em 1985, deve-se ter o cuidado de não confundir causa com efeito, equívoco muito comum quando se avaliam questões dessa natureza. Assim, por exemplo, atribui-se o troca-troca de partido que ocorre nos parlamentos em geral, e no Congresso Nacional de modo muito mais intenso, a um desvio de conduta dos detentores de mandato, como se fosse apenas coisa de caráter. Não é. Ou uma conseqüência da fragilidade das legendas partidárias. Também não é. Tal problema não se equaciona no plano ético porque as causas que o determinam estão enraizadas em uma distorção instalada nas nossas instituições. E a inconsistência dos partidos não é causa mas conseqüência dessa distorção.

São as instituições, portanto, que precisam ser sanadas através de uma Reforma cujas regras imponham outro comportamento aos agentes políticos.

Todo governante, seja prefeito, governador ou presidente da República, sabe o quanto a formação de uma sólida base parlamentar é importante para a governabilidade. Maiorias oposicionistas tendem a subordinar os governos e a restringir sua capacidade de ação. Olhos postos no pleito subseqüente, bancadas oposicionistas majoritárias geralmente não têm interesse político no sucesso de qualquer administração. Mas o sucesso de toda administração é do maior interesse da sociedade.

O assunto de que trato é muito nítido quando se observa a situação federal numa perspectiva das instituições brasileiras. Na atual legislatura, por exemplo, existem 15 bancadas na Câmara dos Deputados, o que significa, em tese, a existência de um igual número de minorias sem qualquer maioria naturalmente constituída. Ora, num sistema de governo em que não é a maioria que faz o governo, mas o governo que precisa fazer maioria, abrem-se as portas para inevitáveis negociações sem as quais todo presidente balança. E alguns, de tanto balançar, acabam caindo. A história da República está repleta de exemplos.

Por imposição da regra do jogo, quem for vitorioso no pleito presidencial fica sujeito à necessidade de vencer sucessivas eleições dentro do Congresso, nas votações de matérias de especial interesse do governo. Para evitar esse calvário, torna-se imperioso compor maioria à base de negociações que começam com os partidos e, não raro, chegam ao corpo-a-corpo. Primeiro atraem-se as siglas para o governo e, a seguir, buscam-se deputados dos partidos oposicionistas para os partidos da base governista. Foi assim, por exemplo, que o PFL, tendo eleito 84 deputados federais, já perdeu 24 e o PSDB, que elegeu 70, perdeu 17. Ao mesmo tempo, o PL pulou de 26 para 45, o PTB de 26 para 48 e o PMDB, de 75 para 89.

O fato de que meu partido (o PMDB) tenha sido beneficiado por essa migração não me impede de apontar o caráter amorfo de tal crescimento, que se faz à custa das seduções do poder e não da firmeza doutrinária e de um consistente projeto para o país.

O que temos, vemos e a imensa maioria da sociedade rejeita ¿ a gritante infidelidade partidária que presenciamos ¿ é influência direta da regra do jogo sobre a conduta dos agentes políticos.

Para resolver esses e outros problemas precisamos de uma reforma que imponha cláusulas de barreira suficientes para reduzir de modo expressivo o número de partidos, penalização a toda troca de legenda durante o exercício do mandato parlamentar, inibição à representação política dos grupos de interesse que, em muitos casos, compõem bancadas mais sólidas do que os próprios partidos. E, principalmente, de um sistema no qual a responsabilidade de governar recaia sobre a maioria parlamentar.

Uma boa democracia não resulta, apenas, de reiterados e sucessivos processos de votação. A democracia se qualifica, também, através de regras que imponham respeito a seus resultados. A posse dos eleitos é um deles. A composição das bancadas e o respeito dos partidos a seus programas é outro. Está se tornando incalculável o custo social, moral e financeiro dos sucessivos adiamentos da nossa reforma política.