Título: Perda recorde de 7,4% no rendimento empurrou trabalhador para pobreza
Autor:
Fonte: O Globo, 25/02/2005, Economia, p. 24

A forte perda de renda que foi a marca do mercado de trabalho em 2003 ¿ os salários sofreram queda de 7,4%, a maior desde 1997 ¿ empurrou milhares de trabalhadores para a pobreza. Mesmo entre os que tinham emprego com carteira assinada ¿ que tem garantias trabalhistas e oferece remuneração maior ¿ mais de um décimo teve, em 2003, rendimento familiar per capita inferior a meio salário-mínimo. Nas vagas sem carteira, subiu de 29,4% para 30,4% a parcela dos que tinham renda inferior à metade do piso.

No caso dos conta-própria, enquanto no ano anterior 26,7% não tinham sequer meio salário de renda familiar per capita, em 2003 essa parcela subiu para 27,6%. E nos trabalhadores domésticos passou de 32,5% para 34,1%.

¿ Foi um ano muito ruim para emprego e renda. Vimos, em 2003, no primeiro ano do governo Lula, a continuidade do que ocorria nos anos de Fernando Henrique Cardoso: desde 1997 a renda está em queda ¿ diz João Saboia, professor do Instituto de Economia da UFRJ.

Economista indica população alvo de programas sociais

Com renda familiar per capita que não chegava a meio salário-mínimo, a empregada doméstica Marinês Francisco, 34 anos, nem lembra mais a última vez que teve registro em sua carteira profissional, que perdeu junto com outros documentos há mais de uma década, durante uma enchente em Jaboatão dos Guararapes, em Pernambuco. Carteira assinada de novo é coisa recente na vida dela: só há nove meses.

Isso depois de passar mais de nove anos vivendo na informalidade: montou birosca na frente de casa para vender refrigerantes, picolés caseiros e salgadinhos. E fazia duas faxinas semanais. Há nove meses, saiu das estatísticas dos trabalhadores com renda per capita inferior a meio salário. Trabalha numa residência de Recife, tem carteira assinada e recebe R$300 mensais, usados no seu sustento e de uma filha.

Considerando o total da população brasileira ¿ inclusive as famílias onde todos estão desempregados ou vivem de aposentadoria ¿ a parcela dos que têm renda per capita inferior a meio salário-mínimo cresceu de 24% em 2002 para 24,6% em 2003. Desde 2001 tem crescido o número de pobres.

O economista Marcelo Neri, chefe do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPS-FGV), chama a atenção para a grande parcela da população apta a se qualificar para os programas sociais do governo. Mais da metade das famílias brasileiras (51%) tinham em casa pelo menos uma criança até 14 anos de idade. E, dessas, 38% tinham renda por pessoa inferior a meio salário-mínimo, ou seja, são o público-alvo das políticas de transferência de renda do governo federal.

FGV: miséria caiu ao menos 2,6% em 2004

Crescimento econômico garante melhora de indicadores sociais

RIO e RECIFE. Depois de um 2003 com aumento da pobreza e perda de renda generalizada, os indicadores sociais de 2004 devem mostrar um quadro bem mais favorável. Também não é para menos: em 2003, a economia brasileira sofreu uma estagnação, crescendo apenas 0,5%, enquanto no ano passado deve ter alcançado uma expansão de 5%. Segundo Marcelo Neri, chefe do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPS-FGV), o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB, soma de todas as riquezas geradas pelo país) deve ter proporcionado um aumento de renda per capita da ordem de 3%. Só isso já garantirá uma redução da miséria de 2,6%, pelo conceito usado por Neri, que considera miseráveis quem tem rendimento insuficiente para cobrir suas necessidades básicas (ou o equivalente a R$108 em valores de 2003 em São Paulo).

Se, além de crescimento econômico, o ano de 2004 tiver registrado uma redução na desigualdade de renda, a queda da miséria terá sido ainda maior. Nas simulações de Neri, se o Índice de Gini (que mede a concentração de renda) recuou de 0,585 para 0,574 (quanto mais próximo de zero, melhor), num desempenho similar ao obtido entre 2001 e 2003, a miséria caiu 8,6%:

¿ É um desempenho muito melhor. Isso mostra a importância do combate à desigualdade ¿ disse o economista.

Ele destaca que os indicadores sociais de 2004 ¿ que o IBGE só começa a apresentar no fim deste ano ¿ terão desempenho muito superior, porque a comparação entre 2003 e 2002 é particularmente cruel. Como o IBGE vai a campo para fazer a sua Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) em setembro, o levantamento de 2002 foi exatamente antes do repique da inflação que corroeu a renda dos brasileiros ao longo de 2003.

¿ O período entre a Pnad de 2002 e a Pnad de 2003 foi de estagflação, estagnação e alta de preços, com aumento do desemprego, o pior cenário possível ¿ explica Neri.

Em Ipojuca (a 57 quilômetros de Recife ), o jovem Edson Francisco da Silva, 19 anos, sentiu na pele a melhora da economia em 2004. Após trabalhar informalmente como pizzaiolo, garçom e ajudante de balcão em lanchonete, agora é garçom em um restaurante na Praia de Porto de Galinhas, onde recebe R$320 por mês, com direito a registro na carteira. Já o irmão, Eli Roberto da Silva, 24, arranjou um cargo público de confiança na prefeitura e ganha quase mil reais.

¿ Grande parte dos meus amigos que não tinham trabalho hoje estão empregados no setor de turismo como eu ¿ afirma Edson. (Luciana Rodrigues e Letícia Lins)

Trabalho infantil atinge 5,1 milhões

Na faixa de 5 a 13 anos, número igual ao da população de Tocantins

Apesar da redução do trabalho infantil nos últimos anos ¿ entre 2002 e 2003, o total de brasileiros de 5 a 17 anos ocupados recuou de 5,4 milhões para 5,1 milhões ¿ as estatísticas ainda mostram um número alarmante de crianças trabalhando. Na faixa etária entre 5 e 13 anos, havia 1,3 milhão nessa situação, um contingente igual ao da população do Estado de Tocantins.

O grosso do trabalho infantil, sobretudo entre os mais jovens, está no Nordeste rural: das 270 mil crianças entre 5 e 9 anos ocupadas, quase 80% exerciam atividade agrícola nessa região.

O IBGE constatou ainda que a taxa de escolarização das crianças de dez a 15 anos que trabalham é de 90,2%, contra 96,5% das que apenas estudam. Essa diferença também se faz presente na faixa etária entre 16 e 17 anos: 70,3% para os que estão ocupados e de 83% para os estudantes. E o atraso escolar atinge 67% das crianças ocupadas:

¿ Isso mostra como o trabalho afeta o desempenho e a freqüência escolar ¿ disse Cristiane Soares, técnica do IBGE.

Cresce a freqüência escolar de jovens de 15 a 24 anos

Mas a pesquisa também mostrou um avanço da freqüência escolar de adolescentes e jovens. Na faixa etária de 15 a 17 anos, a taxa de escolarização cresceu 33% nos últimos dez anos, alcançando, em 2003, 82,4% desses brasileiros. Nos jovens entre 18 e 24 anos, o salto foi ainda maior: 47% entre 1993 e 2003.

Na avaliação de João Saboia, professor do Instituto de Economia da UFRJ, uma maior participação dos jovens na escola pode ser reflexo de sua dificuldade de ingressar no mercado de trabalho. Ou seja, um quadro ruim ¿ falta de oportunidades de emprego ¿ acaba criando um bom resultado: jovens mais escolarizados.

¿ Se puder estudar, eventualmente esse jovem pode ingressar no mercado de trabalho em condições mais favoráveis. Essa é uma combinação positiva, desde que a escola funcione. O problema é que a qualidade do ensino é questionável ¿ diz Saboia.