Título: Roleta verbal
Autor:
Fonte: O Globo, 26/02/2005, Panorama Político, p. 2
Tivesse o presidente Lula aceitado os conselhos para esclarecer suas declarações feitas no Espírito Santo logo que desembarcou em Brasília, na noite de anteontem, as chamas teriam amanhecido mais baixas. Mas Lula, por vaidade ou fixação na autoridade, ou uma mistura dos dois, tem enorme resistência a se corrigir ou explicar-se, embora todo governante esteja sujeito a tal necessidade.
Mais ainda os que, como ele, gostam de improvisar e subir em palanques. Tivemos Fernando Henrique empenhado em explicar que não xingou os aposentados de vagabundos, de que na verdade estaria se referindo apenas aos que se aposentam antes dos 50 anos. O mundo inteiro viu Clinton fazer malabarismos verbais para sustentar que não teve relações sexuais convencionais com Monica Lewinsky. Anteontem à noite, quando Lula desembarcou e foi informado da repercussão de suas palavras, rejeitou as sugestões para refazer a declaração. Propôs-se uma nota oficial que seria enviada aos telejornais da noite. O ¿Jornal Nacional¿ já divulgara o inteiro teor das declarações, já examinadas por juristas do governo. Mas convencido de que não dissera nada demais, Lula recusou todas as sugestões. Acertaram, já no Palácio, antes da reunião para fechar o contingenciamento do Orçamento, a estratégia adotada ontem. Líderes e ministros sairiam em sua defesa, esclarecendo que ele se referira às perdas sofridas pelo Estado brasileiro e em particular pelo BNDES com a má condução do processo de privatização.
Como todos falam português, um esclarecimento do próprio presidente teria sido mais eficiente, evitando a propagação das chamas. Mas até mesmo o que pareceu um recuo mínimo, a referência a um ¿discurso atravessado¿, na solenidade sobre a reforma universitária, seria depois negado como tal. Ele se referia, esclareceu o Planalto, às críticas já feitas à reforma, não ao que disse na véspera.
Se Lula não tivesse pronunciado a palavra corrupção, estariam perfeitos os esclarecimentos de líderes e ministros. O silêncio que ele recomendou foi sobre a situação financeira do BNDES, pensando no interesse nacional e não em disputas partidárias numa hora de riscos para a estabilidade. Pode-se entender isso, trocando-se no discurso a palavra corrupção por má condução, negligência ou similares. Mas a palavra foi dita e o país inteiro pôde ouvi-la.
Para não parecer que estava apenas ¿vestindo a carapuça¿, como disseram os petistas, ou temendo a volta do feitiço contra o feiticeiro, como advertiu o ministro Dirceu, os tucanos terão que dar conseqüência ao pedido de processo contra o presidente por crime de responsabilidade. Foi o que exigiu Fernando Henrique. O governo, que já enfrenta turbulências em sua coalizão, passa a precisar mais ainda dos aliados, que andam encarecendo o custo do apoio. Durante uma semana ou mais, vai se gastar energia na administração neste episódio.
No fundo, ele reflete o arrependimento do PT em relação à transição civilizada ocorrida entre Lula e Fernando Henrique. Ela teria tolhido os planos de uma devassa sobre o governo passado, em busca de irregularidades, principalmente nas privatizações. Passado o tempo da cordialidade, os tucanos começaram a bater e o próprio Lula parece ter se arrependido. Começou também a atirar contra o antecessor. Desta vez, lamentava um aliado, aperfeiçoou a pontaria para o tiro no pé.