Título: As muitas Anapus do Brasil
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Fonte: O Globo, 27/02/2005, O País, p. 3

Um mapa atualizado da violência no campo, obtido pelo GLOBO, revela que ano passado quase dois milhões de brasileiros (385.899 famílias de áreas rurais) estiveram envolvidos diretamente em 1.543 conflitos no campo, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Os números mostram uma nova geografia da violência rural no país, que avança para o cerrado, e revelam que, assim como o caldeirão de Anapu, no Pará, que resultou no assassinato da missionária Dorothy Stang há 16 dias, há diversas outras áreas sob ameaça de conflito.

Com base também em dados do Incra e do Ministério do Trabalho, o geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves, do Laboratório de Estudos de Movimentos Sociais e Territorialidades (Lemto) da Universidade Federal Fluminense, diz que os conflitos estão mais concentrados em Mato Grosso, Goiás, Tocantins, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais.

Em 2003, foram 1.690 conflitos. No governo anterior, os números eram menores: 925 em 2002, 880 em 2001 e 660 em 2000. Os confrontos teriam aumentado por causa da expectativa da reforma agrária ¿ em especial nas áreas com mais terras públicas ¿, da ocupação por grandes produtores e da expulsão de camponeses, indígenas e sem-terra.

Em Minas Gerais, o Vale do Jequitinhonha está sob tensão desde novembro de 2004, quando cinco sem-terra foram mortos e 13 ficaram feridos em um acampamento do MST. Os sem-terra acusam fazendeiros de pistolagem. Nesta semana ocorreram mobilizações na região.

No norte do Mato Grosso, segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), além da disputa entre sem-terra, pequenos posseiros e grileiros, o povo myky, quase exterminado durante os anos 70, assim como os xavantes, estão ameaçados de morte e exposto a saques constantes em suas áreas de floresta.

¿ Em 2004, foram sete assassinatos e temos 25 ameaçados pela pistolagem. São 3,4 milhões de hectares grilados, trabalho escravo e muita expulsão de indígenas e sem-terras. São mais de 30 mil acampados e muitos pistoleiros ¿ diz Adair José Alves Moreira, advogado da CPT em Mato Grosso, estado campeão em conflitos.

A escravização também é maior em áreas que estão sendo desmatadas para o plantio, como em Tocantins, campeão em flagrantes de trabalho escravo em 2004.

¿ O trabalho escravo é maior nos focos de tensão, como Tocantins e sul do Pará. Estão derrubando matas para fazer carvão, usando trabalho escravo para depois semear capim para o gado ou plantar soja. Os gatos fazem a intermediação, recrutam escravos e depois controlam: espancam, matam e enterram em cemitérios clandestinos ¿ diz Marcelo Campos, coordenador da área no Ministério do Trabalho.

Conflitos no Nordeste e na Amazônia Legal

Segundo o geógrafo, no novo mapa da violência rural, aparecem, em pleno Centro-Oeste, dezenas de Anapus. Quando os números de áreas sob conflito são analisados por municípios, aparecem barris de pólvora no cerrado, na Amazônia Legal e em Pernambuco.

No Pará, as Anapus também se expandem pela nova linha de desmatamento da Amazônia, em torno da BR-163. No mapa do desmatamento e da violência, aparece uma novidade no chamado ¿arco do desmatamento¿ da floresta. Os assassinatos pela pistolagem ali também se deslocam de sul e sudeste para o oeste, na região de Anapu a Santarém, em dois blocos importantes de desmatamento, na chamada Terra do Meio.

¿ No mapa aparecem nitidamente o arco e uma flecha, em torno da BR-163, até Santarém. São arco e flecha apontando, como que por ironia, para o resto do país ¿ diz o geógrafo.

Os índices também são altos no rastro da expansão da soja e de outras monoculturas, como na Mata Norte de Pernambuco.

O levantamento tem como base dados parciais da CPT, fechados em dezembro de 2004. A CPT lança em abril seu levantamento, com análises atualizadas. Os dados foram cruzados com base na população agrária de cada estado e transformados em índices.

O vice-presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Carlos Sperotto, discorda da análise, que, para ele, está superestimada. Para a CNA, a violência rural está mais concentrada em São Paulo, no Pontal do Paranapanema, e no Paraná, onde há mais invasões de sem-terra e menos ¿áreas de expansão¿.

¿ Está tudo muito superestimado. Temos um caso presente que mostra isso: um assassinato mudou o governo federal para o Pará ¿ criticou o dirigente da CNA.

O Ministério do Desenvolvimento Agrário não tem dados atualizados sobre os conflitos. O ministro Miguel Rossetto tem dito que os alertas da CPT devem ser analisados.