Título: Cultura
Autor: Gerson Camarotti
Fonte: O Globo, 27/02/2005, O Mundo, p. 41

DURANTE DÉCADAS, O VALIOSO ACERVO DE TELAS E ESCULTURAS LOCALIZADO EM BRASÍLIA FOI PRATICAMENTE IGNORADO NÃO SÓ PELO PÚBLICO, MAS TAMBÉM PELAS AUTORIDADES. SÓ NOS ÚLTIMOS ANOS, A CAPITAL FEDERAL COMEÇOU A PERCEBER QUE UMA PARCELA IMPORTANTE DO PATRIMÔNIO ARTÍSTICO BRASILEIRO ESTAVA SUCUMBINDO AO DESCASO E À FALTA DE CONSERVAÇÃO. NESSE RESGATE DA MEMÓRIA FORAM ENCONTRADAS OBRAS QUE ESTAVAM JOGADAS E ESQUECIDAS ATRÁS DE MÓVEIS, EM DEPÓSITOS E ATÉ MESMO TOALETES.

Recentemente, uma gravura de Pablo Picasso foi localizada, quase que esquecida, numa sala do INSS. Nos palácios do Planalto e da Alvorada também aconteceram casos semelhantes. Agora, todo o acervo está sendo recatalogado. As principais telas e esculturas serão remanejadas para os gabinetes e corredores estratégicos do Palácio do Planalto. A Diretoria de Documentação Histórica da Presidência da República analisa um projeto para transformar esses locais numa espécie de galeria de arte para visitação pública nos fins de semana. Para isso, foi criada uma Comissão de Curadoria do Palácio do Planalto, que será responsável pelo acervo.

¿ Vamos disciplinar o uso das obras de arte e colocá-las em exposição permanente ao público. Isso é um acervo valioso que pertence ao país ¿ diz o diretor de Documentação Histórica da Presidência, Cláudio Soares Rocha.

Quem anda pelos gabinetes do Planalto pode apreciar óleos de Alfredo Volpi, Antonio Maia, Carlos Scliar, Djanira da Motta e Silva, Francisco Brennand, Francisco Rebolo, Glênio Bianchetti, além de gravuras da fase inicial de Gilvan Samico, o maior gravador brasileiro da atualidade.

¿Orixás¿, de Djanira, com todo o destaque

Várias das telas já fazem parte da história do Palácio. A famosa com bandeirolas azuis de Volpi, que foi a marca do gabinete presidencial do governo Fernando Henrique Cardoso, está hoje numa sala discreta de uma assessora da Casa Civil. Lula não quis ficar identificado com a imagem do seu antecessor. Em seu lugar, entrou uma paisagem verde de Rebolo. Já o painel ¿Orixás¿, de Djanira, chegou a ser retirado do Planalto e transferido para o Alvorada depois que funcionários evangélicos da Presidência fizeram pressão. Não queriam uma tela que reverenciasse os santos da religião afro-brasileira. Quando Dona Marisa soube, mandou reinstalar o quadro numa área de visibilidade no terceiro andar do Planalto. Enquanto algumas telas foram rejeitadas, outras foram adotadas por seus inquilinos. Foi o caso da paisagem de Guignard no gabinete da Secretaria Geral da Presidência. O ministro mineiro Luiz Dulci teve uma grata surpresa e uma identificação imediata ao reconhecer a tela do criador da Escola de Belas Artes de Belo Horizonte. Dulci visitou o gabinete ainda no período de transição, quando ele era ocupado pelo ex-ministro tucano Euclides Scalco.

¿ Foi uma agradável coincidência. A tela chama a atenção de todos que chegam. Quando era deputado, tinha no meu gabinete um pôster de Guignard. É um privilégio poder conviver com uma obra original ¿ conta Dulci.

O mesmo encantamento é demonstrado pelo ministro Celso Amorim com o estudo de ¿Guerra e Paz¿, duas telas com dimensões de 165cm x 125 cm, que hoje estão em seu gabinete, no Palácio do Itamaraty. Em 1953, Portinari foi convidado a fazer o famoso mural para a sede da ONU, em Nova York. Foi a partir desse estudo que o pintor de Brodósqui criou uma de suas obras mais importantes, que ficou pronta em 1957.

¿ Convivi com a obra de Portinari na adolescência, em exposições no Rio. Quando servi o Brasil na ONU, sempre me encantava ao ver ¿Guerra e Paz¿, que fica na entrada dos delegados. A imagem me inspirava. Era uma maneira de lembrar o Brasil ¿ conta Celso Amorim.

No Ministério da Fazenda, a maior parte das telas é de propriedade da Receita Federal, como os quadros de Mabe que estão no gabinete do ministro desde 1993. Boa parte das obras que está nos prédios públicos tem a mesma origem: foi incorporada ao patrimônio da união como parte de pagamento de dívidas de empresas e bancos. Algumas obras foram doadas, como a coleção que o pintor paraibano Tomás Santa Rosa entregou ao antigo Ipase, na década de 50, e que depois foi transferida para o INSS. As poucas obras localizadas do acervo original estavam acumulando poeira em gabinetes de Brasília. Cinco anos depois de redescobertas, elas ainda não estão expostas ao público.

¿ Podem estar perdidos muitos outros quadros da coleção do pintor, inclusive um Portinari. O poder público tem o péssimo hábito de não cuidar do seu patrimônio ¿ diz o historiador Francisco Orru, contratado para levantar o acervo do INSS.

Já o Banco Central teve melhor sorte. São contabilizadas em seu prédio, em Brasília, mais de 1.200 obras que pertenceram a bancos privados que quebraram. Desse total, cerca de 200 obras integram o acervo principal. São preciosidades de artistas como Vicente do Rego Monteiro, com destaque para a tela ¿Caos¿ ¿- em exposição no Itamaraty; Ismael Nery, com o óleo ¿Dançarina russa¿; além de quadros de Volpi, Antonio Bandeira, Cícero Dias, Tarsila, Di e Portinari.

Exposição no BC com os trabalhos de Volpi

O BC costuma fazer exposições de suas obras no seu próprio espaço, o Museu de Valores. Ano passado, foi aberta ao público a coleção de telas de Portinari, encomendadas pelo jornalista Assis Chateaubriand para a sede da revista ¿O Cruzeiro¿. Atualmente, é possível visitar no BC uma exposição sobre todos os períodos do trabalho de Alfredo Volpi, consagrado com a fase abstrata das ¿bandeirinhas¿. Alguns quadros também são emprestados para palácios como o do Itamaraty e do Alvorada. Mas o destaque do acervo está distante do público: é o painel ¿Descobrimento do Brasil¿ (398 x 498 cm), na sala do Copom (Comitê de Política Monetária), onde há mensalmente a reunião que decide a taxa básica de juros do país. Pelas dimensões da tela, datada de 1954/56, foi preciso construir uma sala com dimensões especiais para abrigá-la.

Com a construção do Museu da República em Brasília, que deve ficar pronto no próximo ano, parte do acervo do BC pode ser cedido em comodato para criar o seu acervo fixo. O Governo do Distrito Federal está iniciando negociação com a direção do banco. O Museu da República é a última obra do arquiteto Oscar Niemeyer na Esplanada dos Ministérios. Se as negociações avançarem, o painel ¿Descobrimento do Brasil¿ pode virar a principal atração do museu.

¿ Estamos tentando ter parte do acervo do Banco Central em comodato. Cultura e arte não são para ficar guardadas em depósito ou gabinete. O Museu será a oportunidade para colocar as grandes obras para visitação do público. É muito egoísta deixar uma obra de arte para desfrute de poucos ¿ diz a secretária de Turismo do Distrito Federal, a embaixatriz Lúcia Flecha de Lima.

Uma iniciativa original foi feita na Câmara dos Deputados, ano passado. O ex-presidente da Casa, deputado João Paulo Cunha, transformou o gabinete da Presidência em galeria de arte com exposições temporárias. A iniciativa deu certo. Nos fins de semana, a visitação chega a alcançar 3 mil pessoas. Foram instaladas câmaras de vídeo para garantir a integridade das obras. A iniciativa ganhou o nome de ¿Gabinete de Arte da Câmara dos Deputados¿ e já está na sua quarta edição, com obras de artistas paulistas. O destaque dessa exposição são telas e gravuras de Tomie Ohtake. A primeira edição foi uma homenagem ao artista plástico radicado em Brasília Athos Bulcão. As outras duas edições foram de artistas goianos, com destaque para Siron Franco, e dos pintores da Bahia, que contou com telas e esculturas de Carybé.

¿ A repercussão é incrível. Tenho recebido muitas cartas e mensagens das pessoas que estão visitando a Câmara para entrar em contato com a arte produzida no país. Isso mostra que o brasileiro está em busca de conhecimento ¿ aposta João Paulo Cunha.