Título: UMA REVOLUÇÃO PARA PÔR FIM A UM INVERNO DE 29 ANOS
Autor:
Fonte: O Globo, 02/03/2005, O Mundo, p. 37

Eles dormiram em barracas. Eles dormiram nas calçadas na noite retrasada. O Líbano é frio no inverno. Não tão frio como a Ucrânia, mas a geada que cobriu o país nestes últimos 29 anos não tem temperatura. Nunca tantas bandeiras vermelhas, brancas e verdes do Líbano foram usadas de uma forma tão comovente como símbolo de unidade. A apenas algumas centenas de metros do lugar onde Rafik Hariri foi assassinado. E assim, os libaneses devem acreditar que o assassinato do ex-premier desencadeou a ¿Revolução do Cedro¿. O cedro é a árvore que aparece no centro da bandeira libanesa.

Com a renúncia de seu governo pró-Síria, o igualmente pró-Síria presidente Émile Lahoud procurava ontem um governo interino, sem muito sucesso. A irmã de Hariri, Bahiya, uma deputada pela cidade de Sidon, não pareceu interessada em se tornar a primeira mulher a governar o Líbano. O ancião Rashid el-Solh também não quis o emprego, a despeito de origens aristocráticas. Falou-se também de um juiz, mas a carência de candidatos mostra o quão trágico o corpo político libanês se tornou.

Ainda não está claro se o nome Revolução do Cedro começou em Beirute ou na boca do porta-voz do Departamento de Estado americano, mas suas implicações são bastante claras: o Exército sírio deve partir e ¿ mais importante ¿ o serviço secreto do Exército sírio deve deixar o Líbano. Daí o fato de todos estarem esperando para ver se um governo interino vai cuidar do Líbano ou da Síria, cujo protegido, o general Lahoud, é agora um homem solitário no palácio presidencial de Baabda num morro na capital.

A oposição ¿ cristãos maronitas, sunitas, drusos, embora não, para ser franco, os xiitas ¿ se reuniu num palácio do século XVIII onde o líder druso Walid Jumblatt, o novo tigre da liberdade libanesa, esconde-se para sua própria segurança. O povo libanês, de acordo com Walid Jumblatt, derrubou o governo pró-Síria. O povo libanês quer a verdade: quem matou Rafik Hariri? ¿Uma voz, uma bandeira¿, disse Jumblatt. Ele queria ¿a remoção de elementos estrangeiros do Líbano¿ e o fim da ¿interferência estrangeira¿ nos assuntos libaneses.

Mas nem Walid Jumblatt nem os libaneses são ingênuos. Eles sabem que o apoio dos americanos à democracia libanesa é abastecido pela raiva de Washington pelo suposto apoio da Síria aos insurgentes contra as tropas americanas no Iraque. Dessa forma, o apoio de Bush aos ¿heróis¿ da liberdade libanesa é muito condicional.

Bush quer que o movimento de guerrilha Hezbollah se desarme. Os israelenses também. Na verdade, Israel quer o Exército e o serviço secreto sírios fora do Líbano. Dessa forma, a oposição libanesa está pedindo a mesma coisa que os israelenses. Mas Jumblatt quer proteger o Hezbollah, que finalmente expulsou o Exército israelense do Líbano em 2000: ¿Temos de nos entender com o Hezbollah. Eles são libaneses¿. E também enviou esta mensagem a Damasco: ¿Devemos falar francamente com os sírios. Queremos que partam do Líbano. Mas queremos boas relações com os sírios¿.

Seus muçulmanos e cristãos vivem juntos hoje e estes não exigirão controle do país se aqueles não reivindicarem fazer parte de uma ¿nação árabe¿. Mas se um Líbano libertado à la Iraque se declarasse pró-Ocidente, então o país pode entrar em colapso, exatamente como ocorreu na guerra civil entre 1975 e 1990.