Título: OS EUA E NÓS
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 03/03/2005, O País, p. 4

NOVA YORK. Não é apenas por curiosidade intelectual que o ministro José Dirceu está lendo tudo o que encontra pela frente sobre a secretária de Estado americana Condoleezza Rice, com quem se encontrará em Washington. Dirceu quer "entender a cabeça dela" porque, por um desses movimentos só explicáveis na política, seu passado revolucionário acabou transformando-o em um canal de negociação diplomática importante para os Estados Unidos, nesse momento em que a América do Sul vê se consolidar, com a posse de Tabaré Vásquez no Uruguai, uma tendência política à esquerda em vários de seus governos.

O chefe da Casa Civil também assumiu, por determinação do presidente Lula e dentro da coordenação do governo, um papel mais ativo em relação à integração da América do Sul, e foi para preparar a adesão da Argentina ao esforço conjunto de integração da região, que já une Brasil e Venezuela, que esteve em Buenos Aires antes de viajar aos Estados Unidos.

Dirceu vê a América do Sul em um momento de rara oportunidade para o engrandecimento político e econômico da região, a começar pelo Mercosul, que o novo presidente uruguaio quer fortalecer. O projeto brasileiro é ambicioso, e tem como objetivo criar, com a união do Mercosul (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai) e o Pacto Andino (Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e Bolívia), um pólo econômico que se iguale politicamente aos blocos já existentes na Comunidade Européia, nos Estados Unidos com a Nafta e o grupo de países asiáticos.

Antes de assinar os convênios com a Venezuela, semana passada, para a construção de metrô em Caracas e fábrica de lubrificantes, o Brasil já havia feito a mesma coisa tanto com o Peru quanto com a Colômbia, para financiamentos de estradas e outros meios de integração regional. E tem especial atenção aos acontecimentos na Argentina, que continua sendo um parceiro comercial dos mais importantes com a recuperação econômica em curso. Apesar das divergências nas regras do Mercosul.

Todos os projetos assinados e os já encaminhados são de interesse da economia brasileira, como a ligação viária com o Pacífico, facilitando nossas exportações para a Ásia e costa oeste americana. O governo considera que os países da América do Sul terão mais força política se negociarem com os Estados Unidos em conjunto, na formação da Alca, além do fato de que a integração econômica sul-americana tornaria a região menos dependente no comércio internacional.

O projeto de integração tem, portanto, um forte cunho político que, oficialmente, não é de confrontação com os Estados Unidos. O Brasil, no entanto, vai montando sua rede de influências na região, que o coloca em uma posição de formalizar a liderança política. O governo brasileiro está usando, por exemplo, o sistema de vigilância da Amazônia (Sivam) para se interligar a países como o Peru e a Colômbia, montando um padrão de segurança contra o narcotráfico e o terrorismo que tem um forte apelo político na região.

O ministro José Dirceu, desde o início do governo Lula, vem insistindo na criação de um cargo federal para controlar o combate ao narcotráfico, e acha que esse é um dos principais problemas a serem enfrentados pelos governos da região, questão que também é do interesse dos Estados Unidos. Entre as medidas que o Brasil está tomando para ter uma atuação mais ativa no combate ao narcotráfico, está o maior controle das fronteiras e a organização do aparato legal para combater a lavagem de dinheiro. A adoção da Lei do Abate, que permite à Força Aérea derrubar aviões que entrarem no Brasil de maneira ilegal, foi negociada com os governos vizinhos e com os Estados Unidos.

Contudo, para contrabalançar esse poder na região, e enfraquecer a negociação do Mercosul, os Estados Unidos estão fazendo acordos bilaterais com todos os países vizinhos, com exceção da Venezuela, onde a consolidação do poder de Hugo Chávez não agrada aos americanos. O governo brasileiro, porém, considera que a união com a Venezuela é tão estratégica para o Brasil quanto a com a Argentina, devido ao petróleo.

O papel da Petrobras nesses acordos é importante a longo prazo porque, segundo Dirceu, a estatal brasileira está se transformando em uma empresa de energia, e não apenas de petróleo, e pode vir a desenvolver, em parceria com outros países, programas de biodiesel e álcool.

O problema é que Chávez vê essa parceria principalmente na sua concepção antiamericana, o que não é a visão brasileira. Mas a atuação diplomática do Brasil, desde a criação do Grupo de Amigos da Venezuela visa a uma saída democrática para a crise no país. O grande instrumento financiador dessa integração sul-americana, o BNDES, criou até mesmo uma diretoria para a América do Sul.

O ministro José Dirceu defende, e não é de hoje, a integração da América do Sul como uma prioridade da política externa brasileira, mas não apenas a integração física e de infra-estrutura. O objetivo de longo prazo seria uma moeda única e até mesmo um Parlamento do Mercosul, a exemplo do que acontece na Europa.

Assim como o presidente venezuelano Chávez defendeu esta semana uma cooperação militar com o Brasil, o ministro Dirceu já defendeu até mesmo a "integração militar" da América do Sul. O acordo de venda de aviões militares brasileiros para a Venezuela, por exemplo, quase provoca um curto circuito com Washington há poucas semanas, quando um porta-voz do Departamento de Estado expressou sua "preocupação".

Mas, segundo o embaixador brasileiro Roberto Abdenur, a questão foi prontamente esclarecida por enviados da Casa Branca, que negaram essa preocupação, mesmo porque recentemente os Estados Unidos haviam vendido aviões para a Colômbia. (Continua amanhã)