Título: UNS BRIGAM, MUITOS SOFREM
Autor: Alba Valéria Mendonça, Célia Costa e outros
Fonte: O Globo, 03/03/2005, Rio, p. 15

Acordo entre União e prefeitura fracassa e drama de pacientes só aumenta

Fracassou, mais uma vez, a tentativa de um acordo em Brasília entre autoridades municipais e federais que solucionasse a grave crise da saúde pública no Rio. Em resposta às críticas do prefeito Cesar Maia, que anteontem chamou o ministro Humberto Costa de mentiroso enquanto o secretário Ronaldo Cézar Coelho negociava em Brasília, o ministério cancelou a reunião marcada para ontem. E avisou ao secretário que a retomada das conversas agora está condicionada à apresentação, por escrito, de contrapropostas assinadas pelo prefeito.

Ainda não está claro quem tem razão e, enquanto isso, pacientes continuam sofrendo em hospitais com equipamentos quebrados e sem medicamentos. Por superlotação ou falta de segurança para funcionar, três hospitais já fecharam suas emergências em menos de 30 dias: Andaraí, Cardoso Fontes e Jurandir Manfre, os dois últimos em Jacarepaguá. O que não significa atendimento de melhor qualidade para quem já está em tratamento. Ao deixar o ambulatório de oncologia, um dos setores mais desassistidos do Hospital do Andaraí, amparada pelo filho Carlos Alberto, a aposentada Lavínia Maria Marcelino, de 75 anos - que há seis meses depende de tratamento quimioterápico para curar um tumor na pleura - resumiu em uma frase a situação dos 1.200 pacientes de câncer da unidade:

- Só nos resta morrer.

Além do sofrimento da doença em si, pacientes como Lavínia estão sendo condenados a viver a angústia de não saber quando poderão dar continuidade ao tratamento, seja ele preventivo ou pós-cirúrgico. A falta de medicamentos e a irregularidade nas entregas de insumos atingem todos os setores do Hospital do Andaraí - problema já identificado no ano passado pelas auditorias feitas pelo Tribunal de Contas do Município nos maiores hospitais da cidade.

Ontem, durante protesto na frente do hospital, o presidente do corpo clínico do Andaraí Roberto Portes disse que a situação é caótica. Das nove salas de cirurgia, só quatro funcionam. E, mesmo assim, 14 cirurgias foram suspensas esta semana após a quebra do ar-condicionado do centro cirúrgico. A emergência só atende a casos graves. E os queimados têm de esperar mais de três horas para fazer curativos.

Mesmo conseguindo enfrentar a doença, Lavínia esbarra na limitação do hospital, que há dois meses não tinha o medicamento necessário para seu tratamento. Ontem, após telefonemas diários para o ambulatório, ela conseguiu a dose de que necessitava de Gemzar e Carboplatina, que juntos custam mais de R$2 mil. A resignação de Lavínia contrasta com a revolta de seu filho Carlos Alberto.

- Há seis meses o tratamento vem sendo feito de forma irregular. Ela tem câncer e não pode parar a quimioterapia. A vida da minha mãe está nas mãos do poder público. Por mim, convocava toda a população a parar de pagar impostos. Os governos sobrevivem do nosso dinheiro, do nosso trabalho, mas não fazem nada pelo povo - disse ele.

A aposentada Benedita de Fátima de Souza, de 52 anos, desde 2001 vem se tratando no Andaraí de um câncer no reto. Mas de junho para cá não consegue retirar na farmácia o remédio que lhe alivia dores e sangramentos. Por conta disso, a doença já tomou conta de seu corpo

- Retirei órgãos internos, mas ainda sofro muito. A doença está se alastrando. Recebo salário-mínimo e o remédio custa R$1.800. Teria de tomar quatro comprimidos por dia, mas desde janeiro não encontro o remédio, que nunca tem na farmácia - conta Benedita, que até o fim do ano recebia o remédio através de doações.

Licenciada do emprego, a operadora de caixa Solange Hilário Chagas, de 39 anos, há seis meses vem dependendo da ajuda de parentes para fazer o tratamento. Moradora de Itaguaí, ela conta que tirou um tumor do intestino no hospital de sua cidade e foi encaminhada para continuar o tratamento no Andaraí. Mas, devido à falta de medicamentos no hospital, não sabe quando estará curada:

- O tratamento ia terminar em junho, se as sessões fossem contínuas, mas para isso era preciso ter o remédio no hospital. Ganho salário-mínimo e nem sempre consigo juntar R$150 para comprar as 14 ampolas que uso uma vez por semana. Se não tenho dinheiro para comprar o remédio, não tenho tratamento. Quando as sessões são interrompidas, tenho que começar tudo outra vez. O médico disse que tinha 80% de chances de sobreviver, mas, deste jeito, minhas chances estão diminuindo.

A situação também é grave no Hospital da Lagoa, onde, há um ano e meio, o aposentado Edvaldo da Hora, de 77 anos, tenta fazer uma cirurgia. Com um abcesso no ouvido, ele está quase perdendo a audição. A cirurgia já foi marcada e desmarcada duas vezes. Desta vez, ele recebeu um telefonema avisando que ele deve comparecer ao hospital no próximo dia 17. Segundo médicos, caso como o de Edvaldo se complicam em mais de 30% devido à longa espera por uma cirurgia.

- Saio de madrugada de Campo Grande para a consulta na Lagoa. Cheguei a fazer todos os exames para a cirurgia, mas, como foi desmarcada, terei que fazer tudo de novo - disse Edvaldo.

A crise também se agrava nos hospitais do estado, constataram ontem deputados da Comissão de Saúde da Assembléia Legislativa (Alerj) que inspecionaram o Albert Schweitzer (Realengo) e o Instituto de Infectologia São Sebastião (Caju). No Albert Schweitzer, o grupo encontrou três andares com 150 leitos fechados. Com o CTI sem condições de funcionamento, 19 pacientes eram atendidos em macas nos corredores. No pronto-socorro havia uma fila de mais de cem pacientes, em sua maior parte da Zona Oeste. Eles reclamaram que recorreram ao hospital depois de não conseguir atendimento nos postos e centros de saúde municipais. O hospital sequer dispõe de um tomógrafo.

Segundo a comissão, no São Sebastião, o atendimento também é precário: apenas 22 pacientes estão internados por falta de infra-estrutura. De acordo com o presidente da comissão, Paulo Pinheiro (PT), em 26 de novembro o estado prometeu fazer reformas na unidade no prazo de 90 dias. Como nada foi feito, os médicos ameaçam suspender o atendimento a partir do próximo dia 13.

A sorte, até agora, só mudou para o servente Maxwel dos Santos Duarte. Depois de transferido do Cardoso Fontes para o Hospital federal do Fundão, ele pôde finalmente fazer a drenagem do abscesso no fígado que o deixava há um mês no CTI. A previsão é que receba alta em quatro semanas.