Título: Gabeira, Dirceu e Cuba
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 05/03/2005, O País, p. 4

NOVA YORK. Trinta e seis anos depois, o seqüestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick continua interferindo na política nacional, das maneiras mais inusitadas. O líder estudantil José Dirceu, depois de ser um dos comandantes de várias manifestações de protesto contra a ditadura, acabou exilado em Cuba, e foi um dos presos políticos libertados em troca da vida do embaixador.

Sua experiência cubana marcou-o por toda a vida, e hoje o chefe da Casa Civil, José Dirceu, um político dos mais influentes no governo petista, é canal de negociação política com a esquerda da América Latina, em especial Cuba.

Recebido pela secretária de Estado Condoleezza Rice, ideóloga do governo republicano neo-conservador de George W. Bush, o ministro Dirceu viu seu passado revolucionário cubano transformar-se em um importante patrimônio político, e pôde usar seu conhecido pragmatismo para encaminhar conversas delicadas do ponto de vista político, como a pretensão brasileira de obter um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU ou as relações com Cuba.

Já a reação mais indignada contra o relacionamento da Agência Brasileira de Informações (Abin) com o serviço de inteligência cubano, idealizada e defendida por José Dirceu, partiu não de políticos do PFL ou PSDB, que formam a oposição oficial ao governo, mas de um ex-petista, o deputado federal Fernando Gabeira, hoje no PV. Por essas trapaças da sorte, Fernando Gabeira está proibido de entrar nos Estados Unidos desde que participou do seqüestro do embaixador americano.

Sua relação política com o governo petista, e em especial com o ministro José Dirceu, é conflituosa. Gabeira deixou o governo em protesto contra a política de meio-ambiente do governo Lula, depois de ter levado um chá de cadeira de Dirceu no Palácio do Planalto, quando ia discutir a legislação sobre os transgênicos.

Já na primeira notícia sobre a visita do delegado Mauro Marcelo Lima e Silva, diretor-geral da Abin, a Cuba no mês passado, Gabeira fez um protesto, alegando que a maneira de agir e os interesses de um serviço secreto de um governo ditatorial não são os mesmos de um governo democrático. Gabeira estranhava especialmente que o objetivo da viagem fosse organizar treinamento de agentes brasileiros em Cuba. Recebeu uma carta do diretor-geral da Abin garantindo que a finalidade da viagem não foi estabelecer qualquer tipo de programa de formação de agentes brasileiros em Cuba, nem vice-versa, mas de trocar informações sobre assuntos de interesse comum, ¿a exemplo do que a Abin já faz com outros serviços congêneres¿.

O delegado Lima e Silva garante que ¿em nenhum momento da visita foram considerados aspectos vinculados a assuntos de natureza interna ou de cunho político-ideológico, uma vez que não compete à Abin atuar ou se manifestar nessa dimensão¿. O deputado Fernando Gabeira, que me enviou o ofício da Abin com o conhecimento de seu diretor-geral, continua considerando ¿estranho que uma simples troca de informações entre setores de inteligência seja precedida por notícias em jornal. De um modo geral, eles o fazem sem publicidade¿.

No ofício, o diretor-geral da Abin diz que foi motivo de consideração nas conversas com autoridades cubanas ¿o papel do Brasil na realização dos Jogos Pan-Americanos de 2007, particularmente na área de inteligência envolvendo todos os países das Américas¿. Além disso, o ofício explica que assuntos de interesse comum, como crimes transnacionais, tráfico de drogas, de armas e de seres humanos ¿foram incluídos como passíveis de troca de informações entre os dois serviços¿.

Com as declarações do chefe da Casa Civil, José Dirceu, publicadas na coluna de ontem, Gabeira voltou à carga. Para ele, afirmar, como fez Dirceu, que o serviço de inteligência de Cuba é um dos melhores do mundo, ¿omite algumas de suas perversidades contra oponentes políticos, muitos deles jornalistas tentando construir uma imprensa livre em Cuba¿.

Gabeira também estranha que na visita, na qual o diretor-geral da Abin se encontrou com o ministro do Interior cubano e com o chefe do serviço de inteligência, o delegado Lima e Silva tenha levado presentes, como uma camisa do time de futebol do Palmeiras: ¿Não há registro também, pelo menos na minha memória, de algum dirigente de serviço de inteligência levando e trazendo presentes de Fidel Castro, como a imprensa brasileira tem noticiado sobre o diretor da Abin¿.

O deputado Fernando Gabeira já tentou entrar nos Estados Unidos valendo-se do passaporte vermelho de autoridade, com o apoio do governo brasileiro que o indicou para uma missão oficial, mas nada conseguiu. Ele, no entanto, tem posição distinta sobre os acordos que o governo brasileiro tem com a CIA, que não condena: ¿Pode-se argumentar que a CIA usa métodos condenáveis e, no entanto, não me opus ao intercâmbio com os norte-americanos. A diferença é que, bem ou mal, a CIA é controlada pelo Congresso e pela imprensa, configurando, dessa maneira, um intercâmbio de inteligência entre regimes políticos compatíveis¿.

Para ele, o que está sendo apresentado agora como uma fria e profissional troca de informações entre brasileiros e cubanos, ¿é a versão do governo após nossa reação pública¿: O que aparecia antes, sem nenhum desmentido, era uma confraternização festiva, típica da linha de trabalho desenvolvida pelo atual embaixador Tilden Santiago.

Embora considere Santiago ¿uma excelente figura humana¿, Gabeira lamenta que ¿tenha se recusado a criticar a prisão de intelectuais em Havana, sob o argumento de que Cuba era sua segunda família¿. Ora, diz Gabeira, ¿segunda família é bom para estudantes que fazem intercâmbio na Austrália ou na Nova Zelândia. Embaixadores defendem interesse nacional